segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

ACNUR e a manutenção da Paz

"O ódio, a migração forçada, a destruição, as violações sistemáticas dos direitos humanos e outras atrocidades... Civis que são mortos, ficam feridos, são feitos reféns, presos ou mantidos em campos de concentração... Ataques deliberados sobre comboios e pessoal humanitários, restrições no acesso às vítimas, hostilidade declarada, o número crescente de pessoas deslocadas e o desrespeito pelo carácter humanitário das actividades da organização." Foram estas as palavras utilizadas por um representante do ACNUR para descrever os perigos e dilemas com que se confrontam as populações da Bósnia Herzegovina e as organizações que lhes procuram dar assistência.

Infelizmente, estas circunstâncias não constituem um fenómeno isolado. De Angola ao Burundi, da Chechénia ao Iémen e ao Zaire, pessoas deslocadas e agências e pessoal da ajuda humanitária têm sido apanhados numa sucessão de conflitos armados, em cujo contexto os acordos sobre a protecção de civis e de organizações humanitárias são sistematicamente ignorados pelos combatentes. "Vivemos num cenário que, mesmo os mais pessimistas entre nós, não poderiam ter previsto", afirma o mesmo representante (1)

Este sentimento de pessimismo tem sido reforçado pelo reconhecimento de que as técnicas de manutenção da paz tradicionalmente utilizadas pelas Nações Unidas, desenvolvidas para fazer face às necessidades da Guerra Fria, não são adequadas às circunstâncias actuais. Reflectindo sobre este desafio, o Secretário-Geral das Nações Unidas, Boutros Boutros Ghali, observou que "o mundo em que as Nações Unidas têm hoje que actuar é radicalmente diferente da realidade que emergiu do final da Segunda Guerra Mundial. Actualmente, já não se trata de manter a paz entre Estados, respeitando a soberania de cada um deles. Têm agora que encontrar-se soluções para os conflitos que separam os indivíduos, no interior dos países. São estes conflitos que exigem a criação de novas respostas e a descoberta de novas soluções". 




Novas direcções para a manutenção da paz

    Nos últimos cinco anos verificaram-se algumas transformações fundamentais no que diz respeito aos esforços do ACNUR para proteger, dar assistência e encontrar soluções para a situação dos refugiados. Explicando a natureza desta modificação, a Alta Comissária das Nações Unidas para os Refugiados, Sadako Ogata, observou que,"tradicionalmente, os programas do ACNUR têm-se centrado no ambiente relativamente estável e seguro, garantido pelos países de asilo. Contudo, desde 1990, uma percentagem crescente das actividades da organização tem tomado a forma de operações especiais nos países de origem e em zonas de conflito activo". "Ao mesmo tempo", refere ainda a Alta Comissária, cada vez mais, "a organização tem sido, chamada a trabalhar em conjunto com as forças militares, no contexto de operações de manutenção e imposição da paz, de considerável dimensão, promovidas pelas Nações Unidas.

    Estes desenvolvimentos têm tido um impacto misto. Por um lado, as alterações descritas nas declarações da Alta Comissária têm contribuído para a destruição efectiva do velho mito, segundo o qual os problemas dos refugiados são de natureza puramente humanitária, permitindo que o problema da migração forçada assuma um justo lugar no topo da agenda internacional. Em termos operacionais, a evolução da relação entre o ACNUR e as forças de manutenção da paz das Nações Unidas e outras forças militares tem também reforçado a capacidade da organização fornecer ajuda humanitária a populações deslocadas e assistir o seu repatriamento e reintegração.

    Contudo, estas novas oportunidades têm sido combinadas com alguns perigos igualmente importantes: o risco de que a associação com as forças armadas comprometa a imparcialidade e neutralidade das actividades humanitárias, a possibilidade dos esforços de ajuda humanitária serem utilizados como substituto de uma acção internacional decisiva, que previna ou ponha termo a conflitos geradores de refugiados, bem como a potencial ameaça colocada ao direito de asilo pelos crescentes esforços promovidos pela comunidade internacional para prestar assistência a populações afectadas pela guerra no interior do seu próprio país. 



Alterações quantitativas e qualitativas

    A rápida evolução das actividades operacionais do ACNUR nos últimos anos encontra-se intimamente relacionada com o novo e reforçado papel que as Nações Unidas têm sido chamadas a desempenhar na manutenção da paz e segurança internacionais. Entre 1988 e 1994, por exemplo, o número de resoluções do Conselho de Segurança relativas a estas questões aumentou de 15 para 78. No mesmo período, o número de operações de manutenção da paz subiu de 5 para 17, enquantoo pessoal militar e policial enviado pela organização aumentou de pouco menos de 10.000 para cerca de 75.000. Em resultado do incremento do nível de actividade, o orçamento anual das Nações Unidas para a manutenção da paz tem também aumentado muito rapidamente - de cerca de 230 milhões de dólares americanos em 1987-88 para 6 biliões de dólares americanos em 1993-94. É significativo que só em 1993 se tenha gasto mais com este tipo de operações do que nos 48 anos anteriores.

    Estas alterações quantitativas das actividades de manutenção da paz das Nações Unidas têm sido acompanhadas (e em muitos sentidos ultrapassadas) pelas transformações qualitativas dos esforços da organização nesta área.

    Até ao final dos anos 80, as operações de manutenção da paz envolviam, normalmente, o envio de forças multinacionais, equipadas com armas ligeiras, para regiões onde tinham ocorrido conflitos e regiões de potencial conflito ou de conflito activo, onde actuavam como um tampão neutro entre as partes, verificando o cumprimento do cessar-fogo e prestando assistência à retirada de tropas. Assegurando um certo nível de calma em situações de grande tensão, estas operações pretendiam criar um ambiente que permitisse aos políticos e negociadores chegar a um acordo sobre diferendos internacionais. Contudo, na prática, estas iniciativas têm, por vezes, tido o efeito de congelar as "linhas da frente" do conflito militar, desincentivando a procura de uma solução política.

    Durante os últimos cinquenta anos, foram estabelecidas operações de manutenção da paz, do tipo tradicional, em muitos dos locais mais problemáticos do mundo, incluindo a fronteira entre Israel e os seus vizinhos Árabes, bem como as regiões fronteiriças entre a Índia e o Paquistão e entre a Arábia Saudita e o Iémen. Em cada um destes casos, o papel de manutenção da paz das Nações Unidas baseou-se no consentimento e cooperação dos governos em questão. Quando uma ou ambas as partes decidiam que não poderiam continuar a consentir a presença da organização, a força de manutenção da paz não tinha outra opção se não retirar-se.

    As actividades tradicionais de manutenção da paz das Nações Unidas, partilhavam um conjunto de outras importantes características. Em primeiro lugar, destinavam-se, quase exclusivamente, a tratar de diferendos entre Estados e não de diferendos intra-estaduais. Das muitas guerras civis que ocorreram entre os finais dos anos 40 e os anos 80, apenas uma - no Congo - conduziu a um envolvimento substancial de forças de manutenção da paz. Em segundo lugar, eram geralmente de dimensões modestas. Na maioria das 13 operações lançadas entre 1945 e 1988, o número de efectivos militares e civis enviados pelas Nações Unidas foi da ordem das dezenas ou centenas e nunca da ordem dos milhares. Em terceiro lugar, uma vez que o envio de forças de manutenção da paz se limitava, geralmente, a situações em que a sua presença tinha sido consentida e em que já tinha sido acordado um cessar-fogo, o perigo a que os "capacetes azuis" se encontravam expostos era, por isso, relativamente baixo.

    Em quarto e último lugar, as actividades tradicionais de manutenção da paz eram fundamentalmente militares na sua composição e função. Das 13 operações lançadas no período anterior a 1989, apenas três - Congo, Chipre e sul do Líbano - envolveram a prestação de assistência humanitária. Em nenhum destes casos a ajuda de emergência constituiu o objectivo inicial ou principal da missão das Nações Unidas. Apenas no Chipre, o ACNUR assumiu um papel que colocou a organização em contacto próximo com as forças de manutenção da paz.

    Assim, até ao final dos anos 80 o interface entre os esforços de manutenção da paz e da segurança das Nações Unidas e as tentativas, por parte da comunidade internacional, de resolver os problemas dos refugiados manteve-se extremamente limitado. As forças de manutenção da paz actuavam sob o comando do Conselho de Segurança das Nações Unidas e as organizações de assistência humanitária funcionavam sob a alçada do ACNUR, trabalhando geralmente em locais distintos, com objectivos diferentes e utilizando diferentes competências no seu trabalho. Por outro lado, ao longo desse período, a ideia de estabelecer uma relação mais próxima entre as duas funções da organização teria encontrado poucos apoios. O ACNUR procurava, deliberadamente, manter-se distanciado da política das super potências, bem como das funções política e de manutenção da paz das Nações Unidas. Por sua vez, os membros da organização reconheciam que a acção humanitária poderia ser paralisada se fosse demasiado associada a essas actividades.

    Durante os últimos cinco anos, este quadro tornou-se completamente irreconhecível. Em determinadas ocasiões, as forças de manutenção da paz, bem como outras forças militares mandatadas pelas Nações Unidas, têm sido enviadas para situações de conflito interno em que não existe qualquer consentimento - ou existe apenas um consentimento limitado - em relação à sua presença. Consequentemente, as operações de manutenção da paz tornaram-se mais perigosas, de maior dimensão e mais complexas.

    Simultaneamente, o período pós-Guerra Fria tem observado o estabelecimento de uma relação mais próxima entre os esforços das Nações Unidas para manter a paz e a segurança internacionais, prestar assistência humanitária a populações afectadas por conflitos e prevenir e resolver os problemas dos refugiados. Como demonstram os pontos seguintes, estes desenvolvimentos são o resultado de dois fenómenos distintos - o lançamento, no terreno, de várias operações das Nações Unidas de grande dimensão com o objectivo de supervisionar a implementação de planos de paz, em países onde guerras prolongadas chegaram ao fim e a intervenção da organização, dos seus Estados membros e das suas forças militares numa nova geração de conflitos geradores de refugiados. 




Operações de paz alargadas

    Desde os últimos dias da Guerra Fria, as Nações Unidas têm desempenhado um papel importante na conclusão pacífica de uma série de conflitos regionais duradouros, que derivavam todos eles do confronto continuado entre as super-potências - Camboja, Moçambique e Namíbia bem como a região Centro Americana. Estes esforços fizeram surgir um tipo completamente novo de operações de manutenção da paz, cujo objectivo é o de supervisionar a implementação de acordos de paz alargados, bem como a transição para sistemas políticos democráticos.

    Contrastando com as tradicionais actividades de manutenção da paz da organização, a implementação de planos de paz pelas Nações Unidas tem ocorrido num contexto de guerras civis (de luta anti-colonial no caso da Namíbia) e não no quadro de diferendos internacionais. Por outro lado, embora todas estas operações tenham integrado aspectos militares como o desarmamento, a desmobilização de forças armadas e a verificação de cessar-fogo, têm também implicado um vasto conjunto de actividades, envolvendo pessoal civil e organizações humanitárias, que incluem, por exemplo:

    • a prestação de assistência à criação de novos sistemas judiciais;
    • a promoção e verificação do respeito pelos direitos humanos;
    • a supervisão de reformas constitucionais e administrativas;
    • a formação de quadros da Administração e o reforço de estruturas públicas;
    • o registo de eleitores, bem como a organização e observação de eleições;
    • a coordenação de actividades de reabilitação e de desenvolvimento; e
    • a organização de programas de repatriamento e reintegração para refugiados e pessoas deslocadas. 

    Como seria de esperar, o ACNUR e os seus parceiros operacionais têm desempenhado um papel preponderante nesta última actividade e apoiado muitas das restantes. Por exemplo, na Namíbia, o primeiro desta nova geração de planos de paz, o principal contributo do ACNUR para o trabalho do Grupo de Assistência à Transição das Nações Unidas (UNTAG) foi o de garantir que mais de 420.000 exilados namibianos, que residiam noutras regiões em África e noutras partes do mundo, pudessem regressar e participar nas primeiras eleições democráticas do país, realizadas em 1989.

    O ACNUR assumiu um papel análogo no Camboja, onde actuou como a Componente de Repatriamento da Autoridade de Transição das Nações Unidas no Camboja (UNTAC). A organização coordenou o repatriamento e reintegração de 370.000 refugiados da vizinha Tailândia, em 1992-93. Mais recentemente, o ACNUR contribuiu para o trabalho da ONUMOZ, a operação das Nações Unidas em Moçambique, prestando assistência a cerca de 1,6 milhões de refugiados que optaram por ser repatriados antes das eleições de Outubro de 1994.

    Estas operações de paz multi-funcionais têm assumido uma dimensão e complexidade com poucas semelhanças com as tradicionais missões de manutenção da paz das Nações Unidas. Por exemplo, a implementação da Missão de Observação das Nações Unidas em El Salvador (ONUSAL), custou aproximadamente 120 milhões de dólares. A UNTAG envolveu uma despesa de cerca de 368 milhões de dólares e o envio de cerca de 8.000 militares e elementos civis. A UNTAC teve uma dimensão bastante maior, tendo envolvido 22.000 militares e civis e custado cerca de 2,5 biliões de dólares, dos quais 880 milhões foram atribuídos ao repatriamento e reintegração de refugiados. 



Consenso e consentimento

    Os custos substanciais das recentes operações de paz das Nações Unidas têm-se demonstrado um bom investimento e a sua utilidade não tem sido menor no que respeita à resolução dos problemas dos refugiados. Em cada um dos casos acima referidos, o ACNUR e os seus parceiros puderam organizar o regresso seguro e voluntário de um número substancial de refugiados, a maioria dos quais se encontravam exilados há muitos anos. Para além disso, em todos estes países, os refugiados regressaram a locais onde os conflitos armados já cessaram ou onde foram substancialmente reduzidos, onde o respeito pelos direitos humanos foi consideravelmente reforçado e onde foi possível organizar eleições livres e justas que resultaram na formação de governos legítimos.

    El Salvador, por exemplo, sofreu transformações substanciais durante os últimos cinco anos. Num país onde os direitos humanos eram impunemente violados, criam-se agora novas estruturas para garantir os direitos dos cidadãos e assegurar que a sua voz possa ser ouvida no processo de decisão política. Num país onde muitas pessoas foram oprimidas pela injustiça social, guerra civil e violência política, os salvadorenhos podem agora consagrar esforços à reconciliação, reconstrução e desenvolvimento de longo prazo. No entanto, alguns graves problemas continuam por resolver, Entre os quais uma pobreza acentuada, reformas incompletas e o receio de que antigos adversários se manteham politicamente divididos. No entanto, com o apoio das Nações Unidas, o país construiu e possui agora sólidos alicerces para um futuro mais pacífico e mais próspero.

    Embora tenha decorrido relativamente pouco tempo desde o final da maioria das referidas operações de paz, tem-se verificado até ao presente que a maioria dos retornados nestes cinco países - Camboja, El Salvador, Moçambique, Namíbia e Nicarágua - conseguiram reintegrar-se nas suas sociedades e não têm, desde que regressaram, sido vítimas de violações dos direitos humanos que lhes sejam especificamente dirigidas. É verdade que os acordos de paz implementados em vários destes países são ainda frágeis. Mesmo assim, pode dizer-se que as operações de paz das Nações Unidas desempenharam um papel importante ao facilitarem (e de algum modo consolidarem) a solução do repatriamento voluntário.

    Alguns ensinamentos importantes podem ser retirados dos resultados muito positivos destas iniciativas. Embora as recentes operações de implementação de planos de paz e os programas de repatriamento do ACNUR que se lhe encontram associados, tenham diferido consideravelmente entre si em termos de dimensão e estrutura, a sua eficácia global na resolução de conflitos duradouros e situações de refugiados parece derivar de uma combinação similar de variáveis. Ao mesmo tempo, estes exemplos demonstram que a procura de soluções para os problemas dos refugiados depende, muitas vezes, de factores que se encontram fora do controlo do ACNUR e dos seus parceiros. O papel das organizações humanitárias deve, por isso, ser o de maximizar as oportunidades que surjam em resultado de processos políticos e reforçar a vontade de restaurar a paz, através de medidas que promovam o repatriamento, a reintegração e a reconciliação.

    O cansaço da guerra. Em todos os países em questão, as principais partes envolvidas no conflito - tanto os governos, como os grupos de oposição - atingiram um ponto em que desejam libertar-se de situações de conflito prolongado, em relação às quais não existe vitória possível, encontrando-se, deste modo, preparados (e nalguns casos sob pressão) para negociar um compromisso político que permita alcançar esse resultado. Apenas no Camboja, onde os Khmer vermelhos se retiraram do processo de paz durante a operação UNTAC, uma das partes signatárias ignorou o seu compromisso no sentido de um acordo alargado.

    Pressões externas. As influências externas tiveram um papel importante no estabelecimento da paz nos cinco países em questão. Em Moçambique, por exemplo, o governo socialista da FRELIMO foi, até certo ponto, conduzido à mesa das negociações pelo colapso do bloco soviético, enquanto o movimento de oposição, RENAMO, foi empurrado para o processo de paz devido às alterações radicais verificadas na África do Sul - país que sofreu ele próprio fortes pressões internacionais para que fossem introduzidas alterações radicais tanto na sua política interna, como na sua política externa. No Camboja, a URSS e a China utilizaram a sua influência para conduzir as autoridades de Pnom Penh e os Khmer vermelhos para o processo de paz, enquanto em El Salvador, um grupo de países constituído pela Colômbia, México, Espanha, EUA e Venezuela, que ficou conhecido como "os amigos do Secretário Geral", desempenhou um papel importante, prestando apoio diplomático e material ao processo de paz.

    Mecanismos unificadores. Um dos aspectos mais interessantes e úteis das operações de paz das Nações Unidas tem sido o estabelecimento de mecanismos que pretendem criar um grau de interesse mútuo entre as partes em conflito. Por exemplo, no Camboja, os quatro partidos concorrentes foram levados a reunir-se regularmente no Supremo Conselho Nacional, um orgão semi-soberano, presidido pelo Príncipe Sihanouk, que se pretendia representasse os interesses do país como um todo, durante o período transitório. Em El Salvador, a Comissão para a Paz assumiu um papel similar, actuando como um fórum de consulta entre o governo, o principal movimento de oposição e outros partidos políticos. Em Moçambique e na Namíbia, os acordos transitórios supervisionados pelas Nações Unidas também obrigavam a que se atingisse um determinado nível de consenso entre os partidos rivais, antes da realização das eleições de onde sairia um novo governo.

    Clareza de papéis e de objectivos. Nos cinco países que temos vindo a referir, as partes em conflito participaram em negociações alargadas, de modo a determinar os objectivos e calendário do processo de paz, bem como o papel que as Nações Unidas deveriam desempenhar durante o período transitório e as funções dos vários elementos civis e militares. Em resultado destes acordos, a natureza neutra e imparcial da presença das Nações Unidas foi geralmente respeitada e as forças de manutenção da paz puderam funcionar com o recurso mínimo à utilização da força. Estes acordos foram particularmente eficazes no Camboja, onde o ACNUR teve um papel activo ao longo das morosas negociações que antecederam a assinatura do acordo de paz. Consequentemente, o documento final inclui uma secção que trata especificamente do repatriamento voluntário de exilados, permitindo, desta forma, tratar o problema dos refugiados como um dos elementos de um acordo político-militar bastante mais amplo.

    O impacto e o contributo dos militares. Outra vantagem da abordagem integrada da resolução de conflitos e dos problemas de refugiados tem sido a forma como o ACNUR e os seus parceiros têm beneficiado da presença de forças multinacionais de manutenção da paz. Por exemplo, ao levar a cabo tarefas como a desmobilização de combatentes, a destruição de armas e a sinalização e retirada de minas, os capacetes azuis ajudaram a criar condições que permitem o regresso e reintegração dos refugiados. Nestas operações de paz, o ACNUR e os seus parceiros também têm podido apoiar-se na capacidade logística dos militares e da polícia civil, reforçando desta forma a sua capacidade operacional. A contribuição dos militares inclui a escolta de comboios de repatriamento, a segurança de centros de acolhimento e o supervisionamento do bem-estar de retornados, bem como a disponibilização de aviões e camiões para transporte de pessoal e equipamento do ACNUR e de retornados e, finalmente, a disponibilização de equipamento e pessoal qualificado para a reconstrução de estradas, pontes e outras infra-estruturas.

    O apoio da opinião pública. Um último elemento do sucesso das recentes operações de paz das Nações Unidas, frequentemente subestimado, diz respeito ao apoio que que estas têm tido junto do cidadão comum. Nos cinco casos em questão, registou-se, ao nível local, um evidente desejo de paz e entusiasmo pela participação no processo eleitoral. Ao mesmo tempo, os refugiados destes países devastados pela guerra têm, geralmente, demonstrado uma enorme vontade de regressar aos seus países. Como observou um relatório do ACNUR sobre a operação de repatriamento para o Camboja, "o desejo ardente dos refugiados cambojanos regressarem ao seu país e às suas famílias foi talvez o factor isolado mais importante para o sucesso desta operação. A atribuir-se a alguém, o crédito pelo sucesso do repatriamento, ele pertence em última instância aos próprios refugiados". Dentro do mesmo espírito, uma análise da sede das Nações Unidas sobre o processo de paz em El Salvador concluiu que "quaisquer que sejam os méritos atribuídos às Nações Unidas e à comunidade internacional pelo sucesso da ONUSAL, a vitória pertence sobretudo ao povo salvadorenho". 



Repatriamento, reconciliação e processo de paz

    A experiência recente em países como o Camboja, El Salvador, Moçambique e a Namíbia demonstra que quando o envolvimento das Nações Unidas se baseia num acordo e quando a sua imparcialidade é amplamente reconhecida, é possível planear e implementar, de forma integrada, as componentes humanitária, política e militar de uma operação multi-funcional. De facto, é hoje bastante claro que, quando as actividades das Nações Unidas nestas três áreas são consensuais e consentidas, podem complementar-se e reforçar-se reciprocamente. Como sugeriu a Alta Comissária das Nações Unidas para os Refugiados, "a resolução do problema dos refugiados é inseparável dos objectivos mais amplos das Nações Unidas, de prevenção e resolução de conflitos armados. O processo de paz não pode prosseguir sem que seja tratado o problema das populações deslocadas."

    De que forma podem concretamente as actividades humanitárias, em particular aquelas que se relacionam com refugiados e pessoas deslocadas, contribuir para o objectivo mais amplo do restabelecimento da paz e da reconciliação, em países afectados pela guerra? Os resultados das recentes operações do ACNUR no terreno sugerem que existem pelo menos cinco ligações diferentes entre estas duas funções.

    Em primeiro lugar, os programas de repatriamento pré-eleitorais, como aqueles que o ACNUR implementou no Camboja e em Moçambique, podem conferir um importante grau de legitimidade a eleições supervisionadas pelas Nações Unidas. O facto de se oferecer aos refugiados uma oportunidade de regressarem a casa e expressarem as suas preferências não é apenas inerente ao conceito de eleições livres, justas e representativas, mas também impede os partidos envolvidos de contestarem os resultados eleitorais.

    Em segundo lugar, em situações como nos casos do Camboja e Namíbia, em que os países de asilo têm sido utilizados como uma base para operações militares no país de origem, o repatriamento de uma população de refugiados e a desmobilização de um exército no exílio, podem constituir uma pré-condição para a celebração de um acordo político alargado. Não se pode realisticamente esperar que um governo assine um acordo de paz com um movimento de oposição que insiste em manter uma força militar num país vizinho.

    Em terceiro lugar, os programas de repatriamento voluntário podem desempenhar um papel importante, enquanto medida geradora de confiança, demonstrando de forma bastante palpável o progresso e os resultados concretos do processo de paz. A experiência em vários países afectados por conflitos tem mostrado que, para o homem e mulher comuns, o regresso seguro de amigos e familiares que viviam no exílio há largos anos é, frequentemente, uma experiência mais significativa do que quaisquer acordos de paz formais ou resoluções das Nações Unidas.

    Em quarto lugar, quando o pessoal das Nações Unidas enviado para o terreno no âmbito de uma operação de paz, é predominantemente militar (e esse tem normalmente sido o caso), poderão surgir algumas dificuldades em ganhar o apoio e confiança da comunidade local. De facto, acontecimentos recentes no Camboja e noutros países sugerem que a população de um país afectado por um conflito poderá reagir de forma hostil à súbita entrada de um grande número de militares estrangeiros, que nem sempre actuam de acordo com as normas culturais locais. Nestas circunstâncias, a presença de pessoal civil e humanitário, para não mencionar os recursos materiais que trazem consigo, pode desempenhar um papel importante na mobilização do apoio local para a operação de paz no seu todo.

    Em quinto e último lugar, existem actualmente elementos suficientes que demonstram que os esforços humanitários podem ser utilizados como instrumento de reconciliação, reunindo diferentes partidos, facções e grupos sociais com base em interesses e necessidades comuns. Por exemplo, no Camboja, o ACNUR conseguiu estabelecer uma relação de trabalho eficaz com os Khmer vermelhos ao longo de toda a operação UNTAC, mesmo quando esta facção se retirou do processo político e declarou a sua hostilidade em relação à presença das Nações Unidas. Talvez ainda mais significativo tenha sido o facto de, ao desenvolver projectos de construção de estradas e outros projectos de reabilitação, que beneficiavam áreas controladas por um conjunto de diferentes grupos políticos, o ACNUR ter conseguido convocar reuniões regulares entre os Khmer vermelhos e outros partidos do Camboja. Desta forma, a função do Supremo Conselho Nacional para criar consensos foi imitada ao nível local.

    Apesar destes importantes resultados, seria errado sugerir que as recentes operações de paz das Nações Unidas decorreram sem dificuldades. Por exemplo, ao nível político e militar registaram-se vários momentos de algum nervosismo em relação à continuação da participação de movimentos de oposição como a SWAPO na Namíbia (que eventualmente acabaria por formar o novo governo), dos Khmer vermelhos no Camboja e da RENAMO em Moçambique. Em Angola, a UNITA reiniciou a acção militar após ter rejeitado os resultados das eleições de 1992, que tinham sido supervisionadas pelas Nações Unidas. Este problema levou ao efectivo (e espera-se que apenas temporário) descarrilamento de todo o processo de paz.

    Em relação à gestão das operações de paz das Nações Unidas, talvez a crítica mais frequente diga respeito à distorção social e económica que pode ocorrer quando grandes quantidades de recursos humanos e materiais são subitamente injectados nos países mais pobres. No mesmo tom crítico, alguns analistas têm questionado a atenção que as Nações Unidas e os seus Estados Membros têm atribuído a tarefas imediatas e de grande visibilidade, nomeadamente o registo eleitoral, a verificação de eleições, a reforma constitucional e o repatriamento de refugiados. Estas críticas apontam para o facto de, neste processo, a comunidade internacional tender a negligenciar as actividades de mais longo prazo, necessárias ao desenvolvimento e à desmilitarização de sociedades afectadas por anos de guerra (ver caixa 3.1). É precisamente por esta razão que as funções de manutenção da paz e de repatriamento das Nações Unidas devem manter uma relação estreita com as actividades de reabilitação e reconstrução analisadas no Capítulo 4.


      1. J. MENDILUCE, 'War and disaster in the former Yugoslavia: the limits of humanitarian action', World Refugee Survey 1994, US Committee for Refugees, Washington DC, 1994, p 14.

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