quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

Algo de novo na OMC

Sob pressão dos países do Sul e da sociedade civil, a Organização Mundial do Comércio adota decisões que há alguns anos seriam impensáveis. Mas falta muito, para que os direitos humanos sejam considerados um valor mais importante que as trocas e os lucros

Monique Chemillier-Gendreau

Somente um quadro multilateral pode permitir controlar a globalização. Mas, esboçado desde a II Guerra mundial, ele se acha hoje enfraquecido. A abertura comercial do mundo foi forçada pela imposição da cláusula da nação mais favorecida. Fundada na reciprocidade e exibindo toda a aparência de um fator de igualdade, essa regra beneficia de fato os que já se encontram em posição dominante. Na confusão dos anos de pós-guerra, tendo fracassado o projeto de uma organização do comércio internacional, o Acordo Geral sobre as Tarifas Alfandegárias e o Comércio (GATT, em inglês) foi a solução improvisada. Em 1994, ele seria transformado na Organização Mundial do Comércio (OMC), criada sob hegemonia das idéias livre-cambistas.

Mas, em situação de grandes desigualdades, o livre-câmbio é apenas o disfarce do protecionismo dos mais fortes. Certamente, o crescimento mundial modificou o quadro dos ricos e dos pobres, sobretudo pela poderosa ascensão de alguns países da Ásia. Mas essa globalização não controlada tende a empobrecer setores importantes da população nos países industrializados, mesmo que o crescimento se acelere [1]. Sem contar que o comércio está vinculado à dívida, ela mesma condicionada pelas taxas de câmbio. Assim, a sociedade mundial necessita de regras adequadas, traçadas no âmbito de instâncias universais e democráticas.

O paradoxo da situação deve-se ao fato de que a OMC, tão criticada, representa no entanto um passo importante para o multilateralismo. Nela, os Estados têm igualdade de voto — ao contrário da Organização das Nações Unidas (ONU), do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial, onde os procedimentos de voto dão vantagem aos países ricos. Os debates desenvolvem-se sob o olhar da opinião pública (o que não ocorria na época do GATT). Instaura-se uma justiça comercial internacional, baseada em princípios de direito.

Os países mais pobres viram na OMC a possibilidade de se unir contra os mais fortes. Valeram-se disso ao bloquear a negociação em Cancún, paralisada desde a rodada de Doha [2]. Mas a co-relação de forças não lhes permite ir mais longe, e essa paralisia favorece o retorno dos acordos bilaterais ou regionais. Com isso, falta um projeto mundial coerente em que o desenvolvimento do comércio seja articulado ao equilíbrio social e ambiental.

Uma mudança clara no perfil de decisões do Órgão de Resolução de Litígios

Se o campo político está, por enquanto, paralisado, o campo jurídico, menos midiatizado, fica mais poderoso. Uma das novidades mais importantes, com a criação da OMC, foi a fundação do Órgão de Regulamentação de Litígios (ORL), encarregado de uma verdadeira função judiciária de caráter obrigatório. Os países em desenvolvimento começam a se valer dele. Os Estados Unidos se vêem ali cada vez mais freqüentemente no banco dos réus. Propuseram recentemente um enquadramento mais estrito das regras de interpretação utilizadas pelos juízes. Deixam transparecer assim seu despeito por não terem mais o controle sobre essa justiça por meio da qual, pouco a pouco, se impõem princípios gerais para as relações comerciais - quaisquer que sejam os queixosos.

A jurisprudência acumulada em mais de dez anos permite agora uma visão retrospectiva [3]. Mais de 350 queixas foram apresentadas. Nos primeiros anos, os queixosos eram majoritariamente países desenvolvidos, que acertavam as contas uns com os outros. Mas países em desenvolvimento, principalmente os que são considerados emergentes, já vêm utilizando o mecanismo, como no caso do algodão ou do açúcar, para dobrar os grandes [4]. O processo é interestatal e os litígios comerciais são regulados na base dos acordos previamente concluídos.

Todavia, por trás da fachada dos Estados encontram-se interesses privados, freqüentemente colossais. A sociedade civil mundial, que começou a pressionar a OMC, em 1999, quando jogou areia na reunião de cúpula de Seattle, pretende participar dos debates. O Órgão de Apelação – segunda instância para resolução de litígios - permitiu, inicialmente, que agentes não-estatais apresentem comunicações. Isso possibilita que organizações não-governamentais (ongs) expressem seu ponto de vista, freqüentemente na defesa dos interesses dos países do Sul. Mas isso também vale para o lobby das empresas ou de organismos profissionais zelosos de suas posições comerciais. Com isso, a atitude dos juízes tornou-se mais prudente e doravante as considerações não-estatais apresentadas podem não ser levadas em consideração.

Os atores centrais continuam sendo os Estados e o objetivo dos processos é facilitar o acesso dos Estados-membros aos diferentes mercados nacionais, em condições de equilíbrio entre os direitos e as obrigações de cada um. O direito, aqui como em toda parte, outra coisa não é senão essa delicada busca de objetividade ante as reivindicações subjetivas, freqüentemente muito distantes. O processo contribui para a construção de uma comunidade política por aceitação de valores comuns, mas está condicionado a certas exigências. A mais importante é a referência a normas comuns previamente estabelecidas.

No caso da OMC, trata-se dos acordos comerciais, resultantes das rodadas de negociação e refletindo, às vezes rudemente, a relação de forças. Sob o GATT, os árbitros aplicavam tais acordos sem referência a um direito mais amplo, não deixando nenhuma saída para os mais fracos. Já não é assim. O incrível emaranhado que resulta dos acordos acumulados por meio das rodadas de negociação gera a todo momento dificuldades de interpretação. Agora, para preservar os direitos e obrigações dos membros com referência aos acordos da OMC sem aumentá-los ou diminuí-los, os juízes clarificam os termos desses acordos segundo as regras de interpretação do direito internacional público [5]. Princípios gerais do direito, como os do contraditório ou do prazo razoável, já permitem um pouco mais de segurança jurídica.

Surpresa: Peru, Paquistão, Índia, Brasil e China ganham disputas contra EUA- Europa

Porém, o mais importante, é sem dúvida, o caráter obrigatório dos processos e das decisões. Isso ganha mais relevo quando sabemos que o acesso à Corte Internacional de Justiça de Haia (criada pelas Nações Unidas) ou à Corte Penal Internacional está condicionado ao acordo dos Estados. Estes, na OMC, não podem se esquivar da justiça e têm de executar as decisões, sob pena de sofrer contramedidas. Ratificado os acordos de Marrakesh – que criaram a OMC -, o Congresso norte-americano declarou que os Estados Unidos abandonariam o sistema, se fossem condenados diversas vezes. Ora, eles permanecem lá, apesar das numerosas derrotas sofridas. Existem, de fato, novas possibilidades. No entanto, muitos aperfeiçoamentos são desejáveis, como a obrigação que se deveria fazer aos Estados de aplicar, nos acordos bilaterais ou regionais, as regras contidas no quadro multilateral e refinadas pela jurisprudência.

Alguns critérios de interesse geral foram introduzidos na apreciação das regras do comércio internacional. E a análise dos casos já julgados evidencia que certos combates não foram travados em vão [6]. Entre as vitórias simbólicas, está por exemplo a obtida pelo Peru contra a Comunidade Européia (26 de setembro de 2002). A Europa teve de parar de utilizar a designação das sardinhas (Sardina pilchardus, vinda do Atlântico, contra Sardinops sagas, originária do Pacífico oriental) como um obstáculo injustificado ao comércio. Observemos, também, que o Paquistão conseguiu condenar os Estados Unidos, que tinham tomado ilegalmente uma medida de salvaguarda contra as importações dos fios de algodão penteados, sendo que a medida não era proporcional ao prejuízo e este não podia ser imputado integralmente ao país asiático (8 de outubro de 2001).

Caso bastante semelhante tinha oposto a Costa Rica aos Estados Unidos acerca das importações de roupas e lingeriede algodão e de fibras sintéticas e artificiais (10 de fevereiro de 1997). Note-se também que os Estados Unidos foram condenados por aprovarem a emenda Byrd, que permitia compensações por dumping e por subsídios: uma ampla coalizão de Estados conseguiu que o acusado pusesse sua legislação em conformidade com o direito do comércio (16 de janeiro 2003).

A legislação francesa que proíbe a venda de amianto no mercado nacional foi confirmada levando-se em conta a nocividade do produto. A queixa do Canadá, para quem a proibição era um obstáculo a suas exportações, foi rejeitada em nome da proteção da saúde pública (12 de março de 2001). Os subsídios à produção norte-americana de algodão constituem um prejuízo grave que o Brasil tinha o direito de denunciar (3 de março de 2005). A mesma constatação se fez no caso das subvenções disfarçadas concedidas pelos Estados Unidos por meio da isenção fiscal de suas empresas de venda no exterior; a Comunidade Européia conseguiu vencer a resistência persistente da maior potência comercial (14 de janeiro de 2002).

A Comunidade Européia, por sua vez, foi condenada por seus subsídios no caso do açúcar, numa ação movida por Austrália, Brasil e Tailândia (28 de abril de 2005). As medidas de salvaguarda com que os Estados Unidos tentaram proteger seu mercado das importações de cordeiro fresco refrigerado ou congelado, provenientes da Nova Zelândia ou da Austrália, foram condenadas (1º de maio de 2001). Também foram rejeitadas as medidas com as quais eles quiseram se proteger da importação de determinados produtos de aço, caso que mobilizou, contra os Estados Unidos, a Comunidade Européia, o Japão, o Brasil, a Coréia, a China, a Suíça, a Noruega e a Nova Zelândia (1º de novembro de 2003).

Esses processos levantaram questões decisivas. A dos subsídios é central. Do relatório anual da OMC se depreende que, numa amostra representativa de países em desenvolvimento, a proporção subsídios/produto interno é de 0,6%, ao passo que é de 1,4% numa amostra de países industrializados. Assim, a tão louvada concorrência se acha falseada em detrimento dos mais frágeis. Aliás, a paralisia das negociações na OMC deve-se, em grande parte, à inflexibilidade dos países desenvolvidos sobre os subsídios agrícolas. Ora, esses instrumentos fizeram deles os donos do mercado mundial, deixando o resto do mundo em estado de dependência alimentar. Mas denunciar isso não significa apelar para a concorrência generalizada. Falseada ou não, a concorrência pode ser prejudicial para as sociedades mais fracas.

Um grande desequilíbrio na força dos Estados para impor sanções entre si

Todos os paradoxos da globalização aparecem na questão das discriminações. A Comunidade Européia favorece preferências especiais para um grupo de países ditos ACP (África, Caribe, Pacífico). Defendendo uma abertura geral, a OMC não pode validar esse sistema dentro do sistema senão a título provisório. Contudo, essa exceção à não-discriminação beneficia os países em desenvolvimento e a OMC diz colocar o interesse deles no centro do programa de Doha. A recusa de qualquer sistema de preferências teria uma conseqüência mecânica: favorecer os acordos bilaterais ou regionais pelos quais os países desfavorecidos buscariam as vantagens necessárias para sua sobrevivência. Isso destruiria na essência o projeto multilateral já mal das pernas.

A esse respeito, o caso das condições de oferta de preferências tarifárias aos países em desenvolvimento, conduzido pela Índia (seguida por 17 nações), contra a Comunidade Européia trouxe à luz o cerne da dificuldade: o que se designa como país em desenvolvimento? Um sistema de preferências comerciais pode introduzir uma discriminação no interior mesmo do grupo dos países que se dizem “em desenvolvimento” (7 de abril de 2004)? Por enquanto, essa qualidade resulta de uma autoqualificação por parte dos interessados. Por outro lado, a decisão de outorga de preferências é função do arbítrio dos que as oferecer. Nenhum critério objetivo intervém. A jurisprudência atual ainda mantém a possibilidade de preferências, mas, a termo, elas estão condenadas.

De agora em diante, os Estados condenados devem adequar sua regulamentação comercial às decisões tomadas contra eles. Passados os prazos concedidos, seus adversários têm o direito de tomar contra-medidas. Tudo isso já se cumpre no quadro de processos que se refinam por etapas e a colocação em conformidade não é mais entregue ao arbítrio.

É preciso sublinhar o desequilíbrio gritante entre os Estados na capacidade de infligir contra-medidas. Há uma espécie de impunidade para os mais poderosos, já que seus adversários vitoriosos não serão capazes de lhes impor sanções. Isso vale evidentemente para os países pequenos, mas até a Comunidade Européia, vitoriosa contra os Estados Unidos no caso da isenção fiscal das empresas de vendas no exterior, pena para executar contra-medidas equivalentes ao dano que lhe foi causado. As somas em jogo são tamanhas que sanções comerciais desse nível desorganizariam seu equilíbrio comercial.

Idéia: uma Corte Mundial de Direitos Humanos, cujas decisões condicionassem os atos da OMC

Vale notar, enfim, a entrada em jogo da China. Assim como ela se juntou a outros para atacar os Estados Unidos, na questão das taxas norte-americanas sobre o aço, os EUA, em contrapartida, apresentaram diversas queixas contra Beijing. A mais importante se prende aos subsídios ilegais do país à indústria chinesa, a mais recente relativa aos direitos de propriedade intelectual e o acesso ao mercado de certos produtos norte-americanos. Desafios cruciais para o equilíbrio mundial se acham, assim, no tribunal do ORL.

A justiça comercial internacional é chamada hoje para resolver questões extra-comerciais e as ongs exigem uma extensão de suas competências nesse sentido. Contudo, a saúde, a vida das pessoas e dos animais, a preservação dos vegetais e, de maneira mais geral, a moralidade pública são mencionadas como exceções admitidas à “liberdade” de comércio [7]. E o ORL reconheceu em certos casos um interesse superior. Todavia, ele tem de tomar decisões na aplicação dos acordos de comércio e tem tendência a buscar compromissos nesse espírito. O interesse geral paga a conta. Aliás, e aí está o paradoxo, a aplicação rígida de normas ambientais, sociais ou sanitárias pode servir ao protecionismo dos países mais poderosos.

Existe uma categoria de fontes do direito internacional superior a qualquer outra, o direito imperativo geral. São as normas ditas inderrogáveis, o que significa que toda norma contrária tem de ser anulada. Esse esquema, promissor quanto a avanços para a noção de bem comum universal, permanece contudo muito teórico. Para que se torne concreto, é preciso que casos onde essa hierarquia das normas está em jogo sejam trazidos diante dos juízes. Ora, a justiça internacional geral é bloqueada pela possibilidade deixada aos Estados de se esquivar dela. Como a justiça comercial é obrigatória, exige-se dela o que as outras instâncias não podem fazer. Há, portanto, um erro de alvo da parte dos movimentos militantes que deveriam investir contra as debilidades dos procedimentos internacionais em geral. Pois se a jurisdição da Corte Internacional de Justiça e da Corte Penal Internacional fosse obrigatória para todos os Estados, se existisse uma Corte Mundial dos Direitos Humanos diante da qual todos os humanos pudessem exigir direitos válidos para todos, o caminho estaria aberto para avanços sobre as verdadeiras dificuldades. Os princípios inderrogáveis seriam definidos por essas jurisdições e a justiça comercial teria um guia para descartar o livre-câmbio quando os princípios do bem comum estivessem em causa.



[1] Ver Joseph Stiglitz, “Des pays riches peuplés de pauvres”, retomado do Financial Times (Londres) em Courrier International, n. 829, 21 a 27 de setembro de 2006.

[2] Ciclo de negociação de três anos de duração incidindo sobre a liberalização do comércio internacional. Com o balanço negativo, as negociações foram suspensas em 28 de julho de 2006.

[3] Ver Éric Canal-Forgues, Le règlement des différends à l’OMC, Bruxelas: Bruylant, 2003.

[4] Ver Tom Amadou Seck, “Bataille pour la survie du coton africain”, Le Monde Diplomatique, novembro de 2005.

[5] Ver por exemplo a interpretação da palavra “salgado” no caso “Comunidade Européia — Classificação alfandegária dos pedaços de frango desossados e congelados”. (Queixas do Brasil e da Tailândia). Órgão de Apelação, 12 set. 2005.

[6] Para a análise das decisões, é possível se reportar aoJournal du Droit International (Clunet), que, todos os anos, no número 3, propõe sobre a OMC uma “Chronique du règlement des différends”, assinada por Hélène Ruiz-Fabri e Pierre Monier.

[7] Artigo XX do GATT e artigo XIV do AGCS

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