sábado, 14 de fevereiro de 2009

Críticos veem politicagem no esforço para limitar julgamentos do Khmer Rouge

Governo do Camboja tenta refrear tribunal da ONU, dizem críticos.
Acusados de matar mais de 1,7 milhão começam a ser julgados dia 17.

Seth MydansDo New York Times, em Phnom Penh


The New York Times/The New York Times

Chan Kimsrun e seu filho, vítimas do Khmer Rouge na brutal prisão de Tuol Sleng prison, na capital Phnom Penh, em foto de 1978. (Foto: The New York Times)

Em uma rápida olhada, parece ser só um jogo de números: julgar cinco, dez ou mais réus pelas mortes de aproximadamente 1,7 milhão de pessoas pelas mãos do Khmer Rouge, três décadas atrás. 

Porém, enquanto um tribunal respaldado pelas Nações Unidas se prepara para realizar sua primeira audiência de julgamento este mês, a discussão envolvendo esses números está fortalecendo preocupações antigas em relação à justiça e à independência do tribunal. 

O governo do Camboja, afirmam os críticos, está tentando limitar o escopo dos julgamentos por suas próprias razões políticas, um limite que, segundo os críticos, comprometeria a justiça e poderia desacreditar todo o processo. 

"Para mim, é a credibilidade do tribunal que está em jogo, sua integridade e, portanto, sua credibilidade", afirmou Christophe Peschoux, diretor do escritório em Camboja do Alto Comissariado das Nações Unidas pelos Direitos Humanos. 

O primeiro acusado é o homem com talvez o passado mais terrível: Kaing Guek Eav, conhecido como Duch, comandante do local de tortura Tuol Sleng, em Phnom Penh, onde pelo menos 14 mil pessoas foram mortas. Seu julgamento deverá ser aberto com uma audiência processual, marcada para 17 de fevereiro, durante a qual sessões mais sólidas, envolvendo testemunhas e provas, deverão ser agendadas. 

Quatro outros acusados, todos membros do Comitê Central Khmer Rouge, também estão sob custódia, esperando sua vez de enfrentar as acusações por crimes ocorridos enquanto eles estavam no topo da hierarquia do comando, de 1975 a 1979. Cerca de um quarto da população cambojana morreu vítima de doenças, fome ou excesso de trabalho, ou foram executadas sob o domínio comunista brutal do Khmer Rouge. 

Esses cinco acusados são o suficiente, afirmam oficiais do governo do Camboja. 

No entanto, especialistas jurídicos estrangeiros rebatem o argumento, afirmando que, dentro dos limites razoáveis, o processo judicial não deve ser arbitrariamente limitado. 

Após uma década de negociações difíceis e nem sempre amigáveis entre as Nações Unidas e os cambojanos, um tribunal híbrido foi estabelecido, composto por co-promotores estrangeiros, cambojanos e um grupo de co-juízes, uma tentativa de equilíbrio político e legal. 

Agora, mesmo antes do início do julgamento de Duch, esse equilíbrio está sendo testado. 

No mês passado, o co-promotor estrangeiro, um canadense chamado Robert Petit, sugeriu seus outros nomes para a investigação do tribunal, afirmando ter coletado provas suficientes para respaldar possíveis acusações. O equivalente cambojano de Petit, Chea Leang, protestou – não só através de bases legais, mas também por razões que parecem refletir a posição do governo em relação aos julgamentos. 


Acusações adicionais, disse a promotora cambojana, podem ser desestabilizadoras. Tais adendos custariam muito dinheiro, durariam muito tempo e violariam o espírito do tribunal que, segundo ela, vislumbra "somente um número pequeno de julgamentos". 


O primeiro-ministro Hun Sem, grande negociador frente às Nações Unidas em relação ao formato e ao escopo do tribunal, disse que julgar "quatro ou cinco pessoas" seria suficiente, apesar de não haver nenhum limite formal sobre esse número. 

De fato, Peter Maguire, autor de "Facing Death in Cambodia", ("Enfrentando a Morte no Camboja", em tradução livre), sugere que o plano de Hun Sem pode ser julgar somente a Duch – "um criminoso de guerra comum" – e esperar a morte dos outros réus antes de serem julgados. 

Os nomes adicionais sugeridos por Petit ainda não foram divulgados. Porém, pessoas próximas do tribunal afirmam que nenhum deles possui uma posição significativa no atual governo do Camboja. 

Hun Sem e vários membros mais velhos de seu governo fizeram parte do quadro de oficiais do Khmer Rouge, porém especialistas afirmam que eles não se encaixam no escopo do tribunal e não possuem risco de sofrer acusações. 

A ordem do tribunal é processar a alta liderança do Khmer Rouge e "os mais responsáveis" pelos crimes – isto é, gente como Duch, acusado de supervisionar a tortura e matar milhares de pessoas. 

No entanto, no Camboja, os tribunais não caminham em suas próprias direções sem o estrito controle de Hun Sem ou de seus assessores. Alguns defensores do tribunal, chamados de Câmaras Extraordinárias dos Tribunais de Camboja, ou ECCC em inglês, o veem como desafiador do controle político exercido de cima para baixo no país, ao oferecer ao Camboja um modelo de um judiciário mais independente. 

"Algumas pessoas em Phnom Penh aparentemente estão desesperadas pelo fato de que a ECCC pode, de fato, ter sucesso. Isso pode servir como um exemplo de responsabilidade, capaz de ser aplicado de forma mais ampla", disse James A. Goldston, diretor executivo da Open Society Justice Initiative, uma organização sediada em Nova York que busca a reforma das leis. 

"Com a proximidade do início primeiro julgamento, no dia 17, este é o momento de mostrar que o tribunal não é uma ferramenta para o governo cambojano", ele disse. "A credibilidade do tribunal está em jogo". 

A maioria dos cambojanos está ansiosa para ver os líderes do Khmer Rouge sendo julgados, de acordo com uma pesquisa publicada pelo Centro de Direitos Humanos da Universidade da Califórnia, em Berkeley. 

No entanto, as pesquisas de opinião descobriram que cerca de um terço dos respondentes tinha dúvidas em relação à neutralidade e à independência do tribunal, talvez devido à experiência dos entrevistados com seu próprio judiciário corrupto e politicamente manipulado. 

A confiança no tribunal também tem sido prejudicada por alegações de corrupção política, familiar ao sistema de tribunais cambojano. 

As alegações deixaram as Nações Unidas diante da embaraçosa escolha de investigar seus próprios investigadores e juízes, ou arriscar serem vistos como tolerantes da corrupção. 

Agora, com a disputa entre os dois co-promotores em aberto tornada pública, a separação dos poderes no tribunal híbrido irá enfrentar seu primeiro grande teste. 

A disputa deve agora se dirigir a um painel de juízes conhecido como câmara anterior ao julgamento, cuja formação reflete a estrutura majoritária do tribunal – três juízes cambojanos e dois estrangeiros. Um dos juízes estrangeiros da câmara anterior ao julgamento deve se juntar aos cambojanos, em uma maioria de quatro votos, para que uma decisão prevaleça. Se o painel acaba em um impasse de três contra dois, segundo regras do tribunal, o julgamento deve continuar. 

Porém, observadores do tribunal disseram que ainda teremos de esperar para ver o quão cooperativa será a equipe cambojana, caso o governo não queira ver esses casos seguirem adiante. 

Até o momento, não existe nada sugerindo que esse processo não andará como deveria, disse David J. Scheffer, professor de direitos humanos da Northwestern University School of Law, participante das negociações para a criação do tribunal. 

O verdadeiro teste, disse Scheffer em recente artigo publicado no jornal The Phnom Penh Post, será se os juízes da câmara anterior ao julgamento "enfrentarão a situação e cumprirão sua obrigação com o mais alto nível de integridade judiciária". 

"Quando a decisão for divulgada, todos nós poderemos avaliar a situação", concluiu.

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