domingo, 22 de fevereiro de 2009

Crianças-soldado à luz da Lei Internacional

ENTREVISTA/Clare da Silva

 

Primeira corte do mundo a processar casos de recrutamento de crianças-soldado, o Tribunal Especial de Serra Leoa, na capital Freetown, é um modelo novo em termos de Lei Internacional. Híbrido, o tribunal conta com membros locais e estrangeiros.

 

A advogada Clare da Silva, especializada em Lei Internacional, trabalhou no sistema Judiciário de Serra Leoa em casos de ex-combatentes que cumprem pena em penitenciárias de segurança máxima em Freetown, muitos dos quais foram acusados de recrutar crianças durante a guerra civil. Quando libertados da prisão, Clare os ajuda a voltar para suas famílias ao mesmo tempo em que se dedica à sua organização Promotores da Paz e da Justiça (Promoters of Peace and Justice - PPJ), criada há 10 meses. A PPJ realiza workshopspara ajudar esses ex-combatentes a reconstruir suas vidas sem recorrer à violência.

 

Em seu aprendizado no Tribunal Especial de Serra Leoa, Clare da Silva esteve dos dois lados da Justiça: durante dois anos e meio, integrou a equipe que defendeu Hinga Norman, acusado de recrutamento de crianças-soldado e morto em fevereiro.

 

O Comunidade Segura conversou com Clare da Silva sobre sua experiência com crianças-soldado.

 

O Estatuto de Roma criou um Tribunal Internacional em 1998 que proíbe o recrutamento de crianças com menos de 15 anos. O Protocolo Opcional da Convenção dos Direitos da Criança de 2001 proíbe o recrutamento para menores de 18 anos. Como isso é julgado pela Lei Internacional?

 

Estatuto de Roma da Corte Criminal Internacional definiu como crime de guerra o recrutamento, alistamento ou uso de crianças com menos de 15 anos na prática de hostilidades em conflitos internacionais ou não. A Corte de Apelação do Tribunal Especial de Serra Leoa em 2004 incorporou a visão do Estatuto de Roma e simplesmente decodificou o que já era praxe perante a Lei Internacional.

 

Em 2002 o Protocolo Opcional à Convenção dos Direitos da Criança estipulou que os Estados Membros não poderiam recrutar compulsoriamente jovens com menos de 18 anos. No entanto, o Protocolo Opcional considerou 15 anos como idade mínima para o alistamento voluntário. Isso não faz com que esta violação seja considerada crime de guerra.

 

A senhora diria que a Corte de Serra Leoa foi capaz de criar um modelo de sucesso onde, talvez, outros modelos falharam? Como isso reflete no futuro da questão das crianças soldado?

 

Existem algumas inovações de jurisprudências em relação ao Tribunal Especial que estão sendo observadas pela comunidade internacional. O recrutamento de crianças é uma delas. É uma acusação recente e considerada ofensa passível de processo de acordo com o Artigo 4 do Estatuto, o que dá ao tribunal o poder de processar indivíduos por “recrutar ou alistar crianças com menos de 15 anos em grupos armados usando-as para cometer atividades hostis”. Esta é a primeira vez que um Tribunal Criminal Internacional conseguiu processar indivíduos por recrutar crianças soldado. O tribunal manteve o crime em sua própria jurisdição e a Promotoria os acusou nos três casos atualmente em julgamento.

 

E com relação aos outros casos de crianças combatentes na África?

 

O Tribunal Criminal Internacional confirmou em janeiro deste ano seu caso contra Lubanga Dylo, o ex-líder de uma milícia de Ituri, na República Democrática do Congo (RDC), que está sendo processado por recrutar crianças com menos de 15 anos e usá-las para cometer atos hostis.

 

Como funciona um programa de desmobilização e reintegração de crianças combatentes? O Tribunal de Serra Leoa considera alguma pena alternativa para esses casos?

 

Nenhuma criança combatente será julgada no Tribunal Especial por que o atual mandato pretende processar aqueles que são responsáveis por este recrutamento. No entanto, de acordo com o Artigo 7 do Estatuto do Tribunal Especial, o tribunal não tem jurisdição sobre qualquer pessoa que tinha menos de 15 anos na época que cometeu o crime.

 

A senhora acha que um processo similar, ou partes do processo usado no caso das crianças combatentes poderia ser aplicado para o caso de crianças e jovens envolvidas com violência armada fora de situações de conflito?

 

No caso das crianças combatentes, os processos foram movidos até agora contra os responsáveis pelo seu recrutamento. Isso é bem diferente da situação das crianças e jovens envolvidas em violência armada fora de conflitos armados.

 

Como a senhora diferenciaria a questão das crianças soldado em comparação com as envolvidas em violência urbana armada em termos da legitimidade dos atores sociais envolvidos?

 

Eu acredito que é possível fazer uma comparação entre duas situações. Os fatores que geram as duas situações são bastante similares – sentimento de não-pertencimento e de perda, falta de educação e de oportunidades, que forçam os jovens a cometer pequenos delitos que evoluem eventualmente para crimes de maior gravidade.

 

Em que esses dois casos se diferenciam?

 

A violência urbana ou os conflitos em Serra Leoa têm em sua base um enorme contingente de jovens desempregados que usam o conflito ou a violência para compensar suas frustrações. O envolvimento das crianças soldado nos conflitos é um caso bem diferente pois sempre há um elemento de força envolvido ou, como no caso das forças de defesa de Serra Leoa, crianças que eram parte das comunidades e se protegiam dos ataques dos rebeldes, na verdade se tornavam combatentes.

 

É justo considerar mais fácil desmobilizar crianças soldado uma vez que conflitos políticos tendem a acabar e eles serão reconhecidos como parte da sociedade em comparação com as crianças envolvidas com a violência urbana armada?

 

Eu não sei se essa é uma questão de ser mais fácil em um caso do que em outro porque ambos apresentam desafios. Eles são processos diferentes. Frequentemente uma criança combatente desmobilizada está voltando para uma sociedade que não mudou – econômica e socialmente – e pode com freqüência passar novamente por fases violentas. Assim, as condições pessoais como ter acesso a educação e a oportunidades de emprego não terão mudado de forma significativa fazendo com que eles possam se envolver facilmente com a violência mas de forma diferente.

 

Saiba mais:

 

Mais informações sobre o Tribunal Especial de Serra Leoa 

 

Crianças combatentes de Serra Leoa

 

Relatório da Human Rights Watch "Trazendo justiça: os avanços do Tribunal Especial de Seera Leoa, conclusões e necessidades de apoio"

 

Relatório do Grupo de Crise Internacional (International Crisis Group's) "O Tribunal Especial de Serra Leoa: promessas e falências de um novo modelo"

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