sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

OMC: um organismo “frágil” à mercê das políticas protecionistas dos EUA e da União Européia

Se alguém tem autoridade para falar sobre comércio mundial é Peter Sutherland, presidente da BP e da Goldman Sachs International. Sutherland foi diretor geral e fundador da Organização Mundial do Comércio e diretor geral do GATT (Acordo Geral de Tarifas e Comércio). Ele foi também procurador da República da Irlanda e comissário da Comunidade Econômica responsável pela política de concorrência.


Em sua opinião, a OMC — uma agência criada em 1995 com base em regras definidas e que tem como objetivo solucionar disputas entre nações e promover a abertura de fronteiras para os mercados de todo o mundo — corre o risco de ser subvertida pelas políticas protecionistas praticadas pelos países desenvolvidos em benefício de suas indústrias domésticas, sobretudo as do segmento têxtil e agrícola. Contudo, o colapso da organização seria “um erro fatal e terrível”.


Ao discorrer sobre suas perspectivas pessoais acerca da OMC, Sutherland lembrou os anos que se seguiram à Segunda Guerra Mundial, quando as sociedades ocidentais tentaram criar uma estrutura dentro da qual “o comércio e o desenvolvimento ocorreriam de tal modo que se evitassem os conflitos que até então haviam caracterizado o Ocidente”. Imediatamente depois do conflito mundial, disse Sutherland, “a União Européia tornou-se realidade”.


A UE, porém, era apenas parte de um plano que pretendia “instituir estruturas multilaterais em escala global”. Foram criados também o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional com o respaldo da ONU. “Um terceiro degrau dessa escada” seria a Organização Internacional do Comércio, cuja criação foi abortada pelo Congresso americano. Em seu lugar surgiu o GATT, que pretendia ser o estopim de um sistema de comércio multilateral — pelo qual se negociariam acordos comerciais com diversas nações ao mesmo tempo em oposição às parcerias comerciais bilaterais.


Há dez anos, o GATT foi, por fim, substituído pela OMC, uma instituição comercial de nível efetivamente global e que foi concebida como “mecanismo de disputa e de acordo independente e que permitia a um país processar outro”, seguido de “decisão judicial objetiva imune a bloqueio”, disse Sutherland. As regras da OMC são, basicamente, “declarações públicas de delitos cometidos por terceiros em razão do não cumprimento de suas obrigações comerciais”. O sistema também “concede à outra parte o direito de retaliar [...] Já o sistema instituído pelo GATT não permitia esse tipo de decisão judicial objetiva” — o mecanismo então em vigor exigia 100% de unanimidade; portanto, a parte que havia cometido a infração podia também bloquear a sentença proferida. Essa diferença, disse Sutherland, “é fundamental para que se entenda os objetivos da OMC; também é essencial em razão da fragilidade do sistema baseado nas regras que temos atualmente”.


O número de casos levados à OMC desde sua criação — 300 — é “estarrecedor”, observou Sutherland. Esses 300 casos afetam, de uma forma ou de outra, 100 dos 150 membros da organização. Contudo, os principais transgressores, “que são também os principais parceiros comerciais inscritos na OMC, são os EUA e a União Européia”.


Rumsfeld na China


O sistema de regras no qual a OMC se baseia — e que pode parecer “hermético, complexo e incompreensível”, talvez porque os documentos que lhe deram origem totalizem 22.000 páginas — é fundamental para “o desenvolvimento do novo mundo surgido das ruínas da Cortina de ferro”, disse Sutherland. “Com relação ao sistema econômico propiciado pelo livre mercado, que garante maior eficiência e inovação, trata-se, ao menos teoricamente, de idéia que goza de amplo consenso.”

O acolhimento dessa noção significa que os negócios e o comércio, de modo geral, podem ser usados “não apenas como geradores de prosperidade e de crescimento, mas também como sistema capaz de amenizar as tensões entre povos que há séculos promovem guerras”. Em outras palavras, quando as nações discordam em questões geopolíticas, há incentivos para que encontrem soluções pacíficas pelo fato de suas economias acharem-se bastante interligadas.

Sutherland observou, por exemplo, que quando o secretário de Defesa dos EUA, Donald Rumsfeld, em recente viagem ao Extremo Oriente, criticou os arsenais bélicos da China, e os chineses criticaram Rumsfeld pela crítica feita, “podemos ao menos contar com a possibilidade de que os excessos retóricos de um e de outro lado sejam reduzidos por meio de um volume substancial de investimentos em ambos os países oriundos, em grande parte, de um sistema de comércio mundial mais integrado”.

Portanto, “os 46 bilhões de dólares investidos no ano passado na China”, acrescentou Sutherland, “passam a se comportar não como um ponto de desequilíbrio, e sim como um ponto que gera uma certa preocupação, não apenas no Wal-Mart, mas também em outras organizações, com prováveis riscos capazes de desestabilizar as relações comerciais e de investimento em razão de tensões políticas”.


Nesse contexto, disse Sutherland, a questão dos têxteis e do protecionismo americano e europeu ganha relevo especial. “Dissemos aos chineses, aos indianos e aos bengaleses” que, a partir de 1º. de janeiro de 2005, não haveria mais protecionismo na indústria têxtil americana e européia. “Chega então 1º. de janeiro e a Europa e os EUA dizem de repente: ‘Sentimos muito, em razão de uma pressão política irresistível, não há como cumprirmos o que prometemos.’”


As pressões comerciais tornam-se ainda mais sérias em decorrência da prática contínua de concessão de subsídios às indústrias agrícolas da UE e dos EUA. Conforme observam diversos analistas, o governo americano gasta bilhões de dólares com subsídios à agricultura, o que deprime o preço mundial de algumas commodities críticas para as economias dos países em desenvolvimento. Acrescente-se a isso as tensões comerciais da Europa “no Atlântico”, disse Sutherland. “Dos 300 casos mencionados, a grande maioria concentra-se em disputas com nações do outro lado do Atlântico, às quais outras têm se somado de tempos em tempos.”


“Agora temos a disputa entre a Airbus e a Boeing, embora talvez eu não devesse dizer ‘agora’, já que se trata de uma disputa que, no meu entender, existe desde sempre. Jamais chega ao fim; ela tem momentos mais e menos inflamados. Talvez seja algo que devesse ser resolvido sem o auxílio do mecanismo de solução de disputas, para não colocar em risco essa instituição frágil que temos.”


Egito, Índia e África Subsaariana


Ao descrever a OMC, Sutherland enfatizou que a organização não foi “concebida como agência de desenvolvimento, e sim como fórum de negociações comerciais [...] devidamente planejadas e supervisionadas”. Em seguida, acrescentou, “durante muito tempo os principais negociadores comerciais — Europa, EUA e Japão — fizeram praticamente os acordos que queriam fazer e ignoraram suas responsabilidades em relação ao mundo em desenvolvimento, sobretudo no que diz respeito à agricultura e à indústria têxtil. Contudo, mais grave ainda foi deixar de cobrar dos países em desenvolvimento seu comprometimento com a liberalização do comércio, de modo que os interesses dos países mais pobres pudessem ser atendidos”.


Exemplificando, Sutherland disse que no pós-guerra, quando vigia o GATT, europeus e americanos “disseram aos egípcios: ‘Se vocês ficarem do nosso lado durante a Guerra Fria, não precisam se preocupar com a liberalização da economia. Não vamos pressionar muito.’ Foi isso também o que disseram aos indianos”. Como resultado, “o PIB per capita da Coréia — um país que relutava em aderir às negociações do comércio multilateral, e que chegava inclusive a ter posturas hostis nesse sentido — tinha, em 1955, um PIB igual ao do Egito; hoje, o PIB coreano é sete vezes maior”. Além disso, a Índia “recebe cerca de um décimo apenas do investimento direto estrangeiro aplicado na China [...]


Nós não apenas permitimos e incentivamos esse tipo de situação, como também fomos participantes ativos dela. Portanto, não se pode dizer que os países em desenvolvimento foram pressionados muito rapidamente — a verdade é que eles não foram pressionados de forma alguma”.

O risco que se corre com os desdobramentos da rodada Doha — a última das rodadas sobre comércio mundial iniciadas em Doha, no Qatar, em 2001 — é que ela “perpetue esse tipo de pensamento [...] Em outras palavras: ‘Vocês dão e nós tomamos. Não abrimos mão de nossas proteções.’” Para Sutherland, esse é o erro do sistema global de comércio.


O que, indaga Sutherland, a globalização e a OMC fizeram pela África? Pouca coisa. Embora as estatísticas mostrem que, de modo geral, os países em desenvolvimento tenham se beneficiado do comércio, “isso se deu em grande parte no Extremo Oriente, principalmente na China, e não na África”. Contudo, o fracasso que se verificou na África não pode ser atribuído à OMC, disse Sutherland. O problema da África Subsaariana, “que é uma nódoa na consciência moral da humanidade, é que ela não pôde participar da globalização. A África não dispõe da infra-estrutura, do treinamento, da educação e da capacidade necessárias para isso. Além do mais, os governos africanos acham-se imersos na corrupção, sem nenhum outro interesse que não [...] a abertura de uma conta na instituição offshore mais próxima. Esse é o problema.”


Para exemplificar, Sutherland disse que “o princípio fundamental do sistema de comércio multilateral é o princípio das nações mais favorecidas, segundo o qual” um país deve conceder a todos os seus parceiros de comércio os mesmos termos comerciais que concede ao parceiro mais favorecido. “Portanto, se você reduz as tarifas [de importação de um determinado país] de 50% para 5%, deve fazer o mesmo para todos os demais países, e não apenas para um só. O que de fato aconteceu, se pegarmos a UE como exemplo, foi que dos 150 membros da OMC, apenas nove adotam o princípio mencionado.


”[A relação “do Reino Unido com os EUA baseia-se no princípio da nação mais favorecida, assim como sua relação com o Japão, Austrália e Canadá. Todas são nações mais favorecidas”. Ao mesmo tempo, o resto do mundo tem um “tratamento especial e diferenciado”. Em alguns casos, porém, os países que recebem esse tipo de tratamento terminam “produzindo bens que não são necessariamente os mais adequados à sua economia, e em relação aos quais não dispõem de vantagem competitiva básica [...] Essa situação cria também um bloqueio contra a liberalização global do comércio, porque quem dispõe desse tratamento especial e diferenciado pode chegar à seguinte conclusão: ‘Espere aí, se contamos com tarifas reduzidas em todos os produtos, meu tratamento especial desaparece. Todo o mundo agora é igual, e há uma concorrência vindo por aí a que eu pensava estar imune por causa do tratamento especial que me conferiam.’ Esse é outro exemplo de como a UE e os EUA corroem os princípios básicos da estrutura que montamos”.


O futuro do comércio global


Para onde iremos daqui? “Creio que quando a OMC foi criada, a maior ameaça eram os inimigos da globalização”, observou Sutherland. “Eles diziam que a globalização era ruim porque diminuía a proteção dos países em desenvolvimento, que seriam simplesmente pisoteados. Contudo, todas as evidências apontam na direção contrária. Na minha opinião, os opositores da globalização perderam a batalha. Eles admitem agora que o fundamento mais importante do princípio moral que advogam — e que eu aplaudo — consiste em um sistema baseado em regras. Se solaparem esse sistema, derrubarão por terra o mais importante evento multilateral surgido no mundo desde a última guerra.


Trata-se do ideal político e econômico mais nobre jamais criado pelo velho continente. Portanto, desmoralizar a OMC, destruir o multilateralismo ou a UE seria fatal e um erro terrível. O risco hoje, a verdadeiro ameaça dos tempos atuais, é o protecionismo que vejo se aproximar via EUA e UE.”

O voto contrário dos franceses à constituição da UE foi uma manifestação do “medo — medo da globalização, da abertura dos mercados, de um mundo novo, medo do deslocamento de populações da Europa Central e do Leste e de outros lugares em direção à Europa e assim por diante”, disse Sutherland. “O medo tem produzido projetos de lei no Congresso americano que atacam e corroem as relações dos EUA com a China. O medo está fazendo surgir uma nova onda de protecionismo. Meu grande receio é que daqui a cinco anos tenhamos uma Europa cercada de muros, talvez muros que serão compartilhados com os EUA.”


A verdade é que os americanos, só para dar um exemplo, “investiram dez vezes mais na Holanda nos últimos dez anos do que na China. Somente 5% dos investimentos diretos estrangeiros americanos foram feitos fora da órbita da OCDE (Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico) — na Rússia, Brasil, Índia e China. Insisito: apenas 5% nos últimos dez anos [...] A verdade é que podemos perfeitamente erguer um muro em torno do nosso confortável clube. Ou então nós, da Europa, poderíamos simplesmente erguer muros em torno de nós mesmos. Isso seria um desastre — e também a negação do que creio que seja o compromisso moral que serve de esteio ao multilateralismo, bem como à União Européia.”


Publicado em: 04/06/2007
http://www.wharton.universia.net/index.cfm?fa=viewfeature&id=1014&language=portuguese


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