quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

O problema dos apátridas

    No dia 10 de Março de 1993, um grupo de soldados Khmer vermelhos avançou sobre a aldeia de Chong Kneas, no Camboja, e abriu fogo, matando e ferindo mais de 60 pessoas de etnia vietnamita. No pânico que se seguiu, mais de 30.000 membros deste grupo minoritário fugiram para o Vietname, enquanto outros 5.000 ficaram encurralados do outro lado da fronteira, no Camboja. Estas pessoas deslocadas, tal como os seus antepassados, viviam no Camboja há algumas gerações. Falam fluentemente Khmer e consideram-se cidadãos do Camboja. Mas não são reconhecidos como tal pelas autoridades daquele país e têm, consequentemente, sido impedidas de regressar às suas aldeias. Em meados de 1995 não existia ainda qualquer solução à vista para a sua situação.

    A situação da população de etnia vietnamita do Camboja oferece um exemplo ilustrativo de uma questão humanitária importante, mas que é por vezes esquecida: o problema da apatridia. Uma consequência de um sistema internacional baseado no Estado-nação consiste na importância vital atribuída ao vínculo da nacionalidade. Para se poder residir, trabalhar, votar, ser titular de um passaporte e poder sair ou entrar num país, é necessário possuir uma nacionalidade. Tanto em termos materiais, como simbólicos, a nacionalidade permite a um indivíduo pertencer a uma sociedade. Por esta razão é reconhecida como um direito humano e a sua privação arbitrária é proibida ao abrigo do direito internacional.

    Apesar destas normas jurídicas, um número substancial, embora indefinido, de pessoas vive em circunstâncias semelhantes aos membros da etnia vietnamita no Camboja, por não possuirem uma nacionalidade, nem os direitos que se encontram associados a este estatuto.

    No entanto, embora o direito internacional relativo aos direitos humanos reconheça o direito à nacionalidade, não desenvolve as circunstâncias ao abrigo das quais os Estados devem atribuí-la. Cada Estado é soberano no estabelecimento das suas leis de nacionalidade e na decisão sobre que indivíduos poderão ser reconhecidos como seus nacionais. 



Um obstáculo às soluções

    O problema da apatridia relaciona-se com a questão da deslocação de populações sobretudo nos seguintes aspectos: Em primeiro lugar, a apatridia pode actuar como um obstáculo na procura de soluções para o problema dos refugiados. Num conjunto de situações diferentes, os países de origem têm-se recusado a permitir o regresso e reintegração de refugiados cujos pedidos de reconhecimento da nacionalidade tenham sido rejeitados, mesmo se, como acontece no Camboja com a população de etnia vietnamita, nasceram e foram criados no país. Os refugiados cujo repatriamento é, desta forma, impedido podem obviamente encontrar ainda maiores dificuldades se nenhum outro país estiver preparado para lhes oferecer um direito de residência duradouro ou a oportunidade de adquirirem a nacionalidade desse outro país.

    Controvérsias sobre a nacionalidade impedem actualmente a procura de soluções em diversos países, em todo o mundo. Para além da situação do Camboja, têm surgido dificuldades em relação aos refugiados de etnia nepalesa que fugiram para o Bangladesh, aos membros da minoria Bidoon do Kuwait que vivem noutros países árabes e a um pequeno número de "boat people" de etnia chinesa que permanecem em Hong-Kong. Os pormenores relativos a estes casos diferem substancialmente e em cada situação são rodeados de complexas disputas jurídicas, políticas e factuais. Aquilo que têm em comum é o facto de, em todas elas, o país de origem não aceitar o regresso das populações em questão, justificando a sua exclusão com o facto de não possuirem a nacionalidade daquele país.



A ameaça de deslocação

    Uma segunda e talvez mais importante ligação entre a apatridia e o problema dos refugiados diz respeito à ameaça de deslocação e de expulsão que paira sobre muitas pessoas que não são reconhecidas como nacionais dos países de onde basicamente são originárias. Contudo, esta ameaça deriva menos da mera ausência da nacionalidade do que de políticas e preconceitos que, frequentemente, motivam a decisão dos Estados de não negar a nacionalidade a um grupo particular de pessoas.

    Quando ocorre como um fenómeno colectivo, a apatridia é quase sempre um indicador de tensões sociais e políticas subjacentes, envolvendo grupos minoritários que são encarados como diferentes, desleais ou perigosos pela maioria da população e pelas autoridades.

    Exemplos actuais deste síndroma incluem o grupo minoritário Roma (cigano) na República Checa, a minoria muçulmana no Myanmar, vulgarmente conhecida como Rohingya, e a enorme população de etnia russa na Estónia e na Letónia. Nos estados da Ex-URSS existe, geralmente, um risco particular de ressurgimento de nacionalismos étnicos e a introdução de novas leis da nacionalidade pode conduzir à apatridia em larga escala e a movimentos maciços da população.

    Desenvolvimentos recentes na EX-URSS e nos países da Europa do Leste, conjugados com o surgimento simultâneo de uma abordagem pró-activa, preventiva e orientada-para- a-solução do problema da deslocação de populações, deram origem a uma nova consciência da situação dos apátridas. É agora largamente aceite que a questão da apatridia vai muito para além da jurisdição interna dos Estados, dadas as importantes implicações em relação aos direitos humanos, o seu impacto, potencialmente prejudicial, sobre as relações entre estados e a propensão para a criação de problemas de refugiados.

    Na maioria das situações, as pessoas tornam-se apátridas não em resultado de um equívoco histórico ou jurídico mas porque os Estados não aprenderam a conviver com, nem a tolerar as suas minorias. O respeito pelo conjunto total dos direitos humanos - incluindo o direito à nacionalidade - é essencial para que uma sociedade possa viver em paz consigo mesma e em harmonia com os seus vizinhos.

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