sexta-feira, 27 de março de 2009

Vozes do Camboja

No Camboja, os juízes agem quase abertamente como subordinados do Poder Executivo.18 Durante a UNTAC, funcionários da ONU observaram que " embora os tribunais sejam tecnicamente independentes dos braços executivos do governo, eles permanecem totalmente sujeitos à sua direção" .19 Durante aquele período, o ministro da Justiça explicou aos funcionários da UNTAC que os juízes que não seguiam suas instruções e, assim, " desobedeciam a lei" , deviam ser punidos.20

As autoridades do Poder Executivo não falam tão claramente hoje em dia, mas pouco mudou. Em seu relatório de 2005 para a Comissão de Direitos Humanos, Peter Leuprecht, representante especial da ONU junto à Secretaria Geral sobre Direitos Humanos no Camboja, disse que estava " cada vez mais óbvio" que " a impunidade não era somente conseqüência da baixa capacidade das instituições policiais e de um judiciário fraco; o judiciário continuava a sofrer a interferência do Executivo e estava aberto à corrupção" .21 Ele concluiu que " os esforços para reformar o judiciário da última década foram incapazes de obter alguma melhora significativa na administração da justiça" .22

Por que tem sido tão difícil arrancar o judiciário das mãos do Executivo? Uma resposta talvez seja a maneira como o poder é compreendido e praticado no Camboja.23 Ao contrário das burocracias legais ocidentais que, idealmente, funcionam conforme regras gerais, o sistema clientelista cambojano baseia-se em laços pessoais de lealdade entre os superiores e aqueles que lhes são fiéis.24 Embora as regras no papel possam parecer semelhantes àquelas de outras nações, a realidade é que o governo funciona mediante " relações patrão-cliente" – relações de auxílio mútuo entre os que estão no poder e seus quadros de dependentes, que operam em forma de pirâmide. Hinton observa que " vários funcionários de alto escalão podem ter cadeias de poder e unidades militares que lhes são fiéis (bem como cadeias de funcionários públicos)" .25

Patrões de status mais alto protegem e fornecem recursos para seus clientes que, por sua vez, pagam a dívida mediante apoio, respeito e obediência. Os cambojanos referem-se a essa relação clientelista usando termos familiares: as crianças (clientes) devem obedecer aos pais (patrões).26 A deferência aos seus superiores é inquestionável, pois os patrões são vistos como indivíduos poderosos que devem ser temidos.27

Os juízes cambojanos ganharam suas posições graças a outras autoridades mais poderosas e, portanto, quase certamente se consideram subordinados (ou clientes) das autoridades do Poder Executivo.28 Com freqüência, essas relações datam da criação do poder judiciário, na década de 1980.29 Naquela época, o governo cambojano estava isolado politicamente do Ocidente, da China e da ONU, e os estudantes cambojanos só conseguiam obter formação jurídica nas escolas soviéticas. Os candidatos eram escolhidos para estudar no exterior como recompensa pela lealdade ao partido no poder em Phnom Penh.30 Em conseqüência, devemos esperar que alguns dos advogados mais antigos e mais bem formados do país sejam também os mais próximos e fiéis ao partido dominante. Quando visto dessa perspectiva, não surpreende o fato de o judiciário não agir com independência.

O que surpreende muitas pessoas, no entanto, é que a visão clientelista do governo seja aceita pelo povo. Em uma pesquisa nacional, a Fundação Ásia descobriu que a maioria dos cambojanos prefere um governo local feudal ou paternalista tanto às formas democráticas como às autoritárias. 56% dos cambojanos disseram que o governo local " é como um pai e o povo, como um filho" .31 As pessoas esperam que o governo funcione como um plano de assistência mútua, como filhos que obedecem aos pais e pais que cuidam dos seus filhos.

Em suma, a noção de separação dos poderes é absolutamente estranha ao pensamento cambojano sobre governo, que é baseado em laços pessoais de poder entre as autoridades governamentais. Desse modo, o controle do Executivo sobre o judiciário será um obstáculo enorme para qualquer tentativa de reformar os tribunais do país.

Diferenças culturais na resolução de disputas

Além do modo como o poder está estruturado, há outros compromissos culturais que complicarão qualquer esforço no sentido de promover o Estado de Direito.

A professora Rosa Eherenreich-Brooks escreve: " [...] o Estado de Direito não é algo que exista 'fora da cultura' e que possa ser de algum modo acrescentado a uma cultura existente pelo simples expediente de criar estruturas formais e reescrever constituições e estatutos" .32 Essa crítica pode ser claramente aplicada ao Camboja. As mudanças na letra da lei e a elaboração de uma constituição não conduziram a uma imposição imparcial da lei nem criaram um estilo ocidental de cultura legal. Um dos motivos talvez seja que muitas leis e procedimentos não emergiram da sociedade cambojana, mas foram importados como parte de um esforço de desenvolvimento maior. Esta seção sustentará que as diferenças culturais, em princípios e procedimentos de resolução de disputas, não podem ser ignoradas quando se analisam projetos como o das Câmaras Extraordinárias.

Tomemos, por exemplo, o princípio da igualdade. As noções de igualdade dos indivíduos e de igualdade perante a lei são absolutamente fundamentais para a idéia ocidental de justiça. Contudo, no Camboja, este mesmo princípio tem um significado muito diferente. Os indivíduos não são considerados iguais uns aos outros, mas a importância relativa deles é constantemente medida.33 Dizem antropólogos cambojanos: " As relações sociais no Camboja, tal como aquelas de todo o Sudeste Asiático, são hierárquicas. Ninguém é considerado igual a outra pessoa" . Com efeito, Ledgerwood e Vijghen escrevem que " a noção idealizada de equivalência moral talvez nunca tenha estado presente na sociedade khmer" .34

Mais ainda, o princípio da igualdade, para alguns cambojanos, se confunde com as políticas do Kampuchea Democrático, quando as pessoas eram despojadas de suas posses e obrigadas a trabalhar " igualmente" nos campos.35 Na cabeça de alguns cambojanos, " igualdade" é um palavrão.

Do mesmo modo, o princípio de justiça assume outros significados no Camboja. Ldgerwood e Vijghen escrevem sobre uma senhora idosa de uma aldeia que não recebeu ajuda para o desenvolvimento, embora fosse pobre, porque o chefe da aldeia favoreceu seus parentes e amigos na distribuição e ela não fazia parte do grupo de patronagem dele. Eles escrevem: " [...] ao contrário dos conceitos ocidentais, essa condição não é considerada iníqua ou injusta pelos habitantes da aldeia [...] todos esperam que uma pessoa favoreça seus parentes e amigos, senão diriam que ela negligencia os interesses de seus parentes. [...] nesse sentido, é 'justo' favorecer sua clientela" .

Ademais, uma análise cultural das práticas cambojanas de resolução de disputas revela diferenças importantes entre as teorias sobre esse tema que se desenvolveram no Ocidente e aquelas que medraram no Sudeste Asiático.36 Um sistema judicial ocidental para gerir as disputas foi introduzido no Camboja pelos franceses durante o período colonial,37 mas nunca substituiu efetivamente o método nativo de resolver problemas conhecido como somroh-somruel, um processo de " negociação ou mediação auxiliado por uma terceira parte" .38

O objetivo da mediação somroh-somruel numa aldeia é obter uma solução da disputa que resulte num fortalecimento positivo da relação entre as partes em disputa. Um conflito específico não é visto como um evento isolado ou como a luta de interesses intrinsecamente incompatíveis. Ao contrário, a atitude tradicional dos cambojanos em relação ao somroh-somruel considera o conflito como uma ocorrência que pontua naturalmente todas as relações de longo prazo.39

O somroh-somruel parece refletir as preferências culturais peculiares dos cambojanos quando se trata de resolução de conflitos. Por exemplo, enquanto as tradições ocidentais valorizam um árbitro imparcial, os cambojanos procuram com freqüência mediadores que estejam familiarizados com a comunidade e os contendores. O PNUD concluiu que " os indivíduos preferem instituições e autoridades quando há uma possibilidade de que elas negociem e participem na resolução da disputa. Decorre disso uma preferência por autoridades locais" .

Há também elementos religiosos embutidos na resolução de conflitos; 95% dos cambojanos são budistas da escola theravada.40 O estudioso do budismo Ian Harris observa que " o ideal do patrício culto no Oriente [foi historicamente] o do cavalheiro que faz a paz, não um advogado habilidoso que ganha causas para outros no tribunal" .41 " Há indícios de que os budistas theravada do Sudeste Asiático são menos assertivos em suas demandas por 'direitos' graças a uma visão de mundo religiosa que liga tais demandas a tentativas ilusórias de engrandecer o eu." 42Marija de Wijn escreve que " os aldeões mostravam freqüentemente uma preferência por tipos restaurativos de justiça em que as pessoas 'ficam amigas de novo'" .43

A resolução tradicional de conflitos no Camboja funciona segundo princípios essencialmente diversos do sistema jurídico ocidental. Contudo, os tribunais comuns e as Câmaras Extraordinárias do país baseiam-se fundamentalmente na abordagem ocidental.44

Tentar obter adesão às sensibilidades legais ocidentais exigiria nada menos do que uma mudança de paradigma: isso é pedir demais para a maioria dos cambojanos que teve pouca ou nenhuma exposição às idéias jurídicas ocidentais.45 Como Ehrenriech-Brooks sugeriu, as condições para uma tal mudança (e, na verdade, sua desejabilidade) não são bem compreendidas.

Tomados em seu conjunto, esses fatores – baixa capacidade dos profissionais do direito, sistemas de poder que fluem através de laços pessoais de lealdade e diferenças culturais nos princípios legais – apontam para um conjunto complicado de obstáculos para a promoção do Estado de Direito no Camboja.

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