sexta-feira, 13 de março de 2009

A MORALIDADE DA CLONAGEM[1]

Fermin Roland Schramm[2]

Por “moralidade da clonagem” entendo o conjunto de argumentos morais pró e contra a utilização da tecnologia clonagem com fins reprodutivos e/ou terapêuticos, ou seja, consistentes em produzir seres vivos, ou partes de seres vivos (por exemplo, órgãos e tecidos), a princípio iguais ao original do ponto de vista de alguma característica considerada essencial, ou de todas.

Uma primeira pergunta, espontânea, que surge frente a essa nova forma de reprodução e terapêutica, consiste em perguntar se o ser humano teria o direito de interferir nos processos naturais da vida ou – para utilizar a linguagem religiosa - nos desígnios divinos?

Alguns respondem que sim, outros que não. Quem responde sim o faz, via de regra, tendo em conta os possíveis benefícios para a saúde humana: seja porque permitiria a reprodução em casais que não podem recorrer, satisfatoriamente, a outros meios, seja porque a clonagem permitiria ter uma reserva de partes do corpo sadias capazes de substituir as partes doentes. Esta resposta é intuitivamente correta do ponto de vista moral, pois se baseia num benefício em prol do bem-estar humano.

Outros respondem negativamente, argumentando que os riscos, de vários tipos, seriam muito mais importantes dos benefícios potenciais, razão pela qual a clonagem deveria ser banida. Mas, respondendo assim, deveriam então responder a questão seguinte: se o Homem não pudesse interferir nos processos naturais, na realidade não haveria praticamente nenhum tipo de ciência e tampouco a Medicina. Efetivamente, o que a Medicina faz é interferir em processos naturais que não são considerados bons, ou seja, nas doenças, e ninguém pode razoavelmente contestar que a medicina é a princípio algo bom, a não ser que se acredite em alguma forma de fatalismo, o que seria completamente contrário ao imaginário contemporâneo da maioria das pessoas, que valoriza positivamente a saúde e o bem-estar humanos.

Como sanitarista e bioeticista preocupado menos com o valor da vida em si, mas com o valor da vida enquanto condição para obter bens que considero moralmente legítimos, isto é, com a qualidade de vida e os meios que permitem valorizá-la, julgo que o ser humano, embora seja também um ser natural, submetido a leis naturais compartilhadas com os outros seres vivos, deve ser considerado também como ser cultural e técnico. Como tal o ser humano é alguém que tenta interferir nos processos naturais por razões de sobrevivência ou de saúde.

Atualmente, como já mencionei no começo, fala-se em dois tipos de clonagem humana: a reprodutiva e a terapêutica.

A clonagem reprodutiva produz em tese um ser geneticamente idêntico a um indivíduo existente. Digo “em tese” porque o ser clonado compartilha só o DNA do núcleo do original, que é só uma parte do genoma de uma célula visto que existe ainda o DNA das mitocôndrias (que não é reproduzido visto que a clonagem pode ser utilizada para evitar doenças de origem mitocondrial); não conhecemos ainda bem a estrutura do genoma, nem suas funções exatas, nem como ele evolui (questões estudadas pelos emergentes âmbitos da genômica estrutural, funcional e evolutiva) e, sobretudo, não sabemos quais genes sintetizam quais proteínas e como (estudos feitos pela recém nascida proteômica). No entanto, essas não são questões morais, mas técnicas. Sendo assim, a moralidade da clonagem reprodutiva implica em ponderar se ela é lícita, ou não, tendo em conta que pode vir ao encontro do aumento da infertilidade humana: deste ponto de vista pode ser considerada um bem pois evita sofrimentos evitáveis. Este tipo de clonagem pode, por exemplo, ajudar casais que queiram ter um filho sem recorrer à reprodução assistida através de um doador externo (chamada heteróloga) ou que queiram selecionar o sexo de sua cria para evitar doenças genéticas ligadas ao sexo.

Já a clonagem terapêutica é considerada menos problemática visto que tem como finalidade a terapia contra determinadas doenças de origem genética. Atualmente conhecem-se dezenas, senão centenas, desse tipo de doenças, tais como distrofia muscular progressiva, diabetes, Alzheimer, Parkinson, doenças autoimunitárias, cânceres do sangue (leucemias), etc. Mas no futuro serão certamente milhares pois este campo de pesquisa está em pleno desenvolvimento. Portanto, a clonagem terapêutica é moralmente legítima porque permite o desenvolvimento de terapias úteis a um grande número de pessoas, evitando seu sofrimento e melhorando em princípio sua qualidade de vida.

Do meu ponto de vista, ambos os tipos de clonagem são moralmente defensáveis e não vejo uma diferença substantiva entre eles.

Uma das questões muito debatida nos últimos anos, sobretudo nos Estados Unidos e na Europa, é a clonagem de embriões para fins terapêuticos, mas não considero que a clonagem de embriões traz novas questões, diferentes daquelas que dizem respeito às pesquisas sobre os embriões (nisso concordo com o bioeticista australiano Peter Singer).

Ultimamente vem se discutindo muito sobre a utilização das assim chamadas células-tronco (stem cells em inglês), que são células ainda indiferenciadas e que permitiriam fabricar qualquer tipo de tecido e órgão desejado, desde que “reparadas” em suas características portadoras de doenças. Tais células, tiradas do próprio paciente - e que são portanto geneticamente idênticas às outras células de seu organismo – têm a vantagem de não sofrer rejeição (contrariamente aos órgãos recebidos de doadores), podendo-se vislumbrar, num futuro não muito longínquo, um banco de células-tronco para cada indivíduo. Essas células-tronco, adicionadas de substâncias adequadas e, se necessário, “reparadas”, podem dar origem ao tecido desejado, regenerando portanto a parte do organismo afetada pela doença.

Atualmente, existem três fontes conhecidas de células-tronco: (1) aquelas possuídas a princípio por qualquer organismo humano, jovem ou velho que seja (mas com a tendência a diminuir com a velhice), e que estão presentes na medula óssea, no sangue e outros tecidos; tais células têm a vantagem de evitar a rejeição pelo organismo, mas a desvantagem atual de não sabermos ainda se existem em quantidade suficiente em cada organismo e se podem diferenciar-se em qualquer tipo de tecido (totipotência), além de não servirem, sem manipulação, no caso do doador ser portador de doenças de origem genética; (2) aquelas contidas no cordão umbilical, que é reconhecidamente rico em células-tronco; tais células têm também a desvantagem de não sabermos ainda com certeza se são totipotentes; (3) as embrionárias, que sabemos que são totipotentes.

Dos dois tipos de clonagem – como vimos – a terapêutica é evidentemente a mais aceitável moralmente, embora, no meu entender, existam bons argumentos também para a aceitação moral da primeira, apesar de ser quase universalmente ainda rejeitada.

A possibilidade de se clonar um ser humano existe. No entanto, várias perguntas ainda estão sem respostas: deve-se fazer a clonagem? Quem serão os beneficiados? Quais serão os problemas não previstos? Quais as possíveis e prováveis conseqüências?

Como tudo o que é novo, não se pode prever exatamente o que acontecerá, mas este não é um argumento suficiente para não tomar decisões pois o imobilismo pode ter conseqüências daninhas. Agora, muitas vezes, usa-se o argumento de que não se deve fazer nada, quando não se pode prever o que vai acontecer, aplicando assim o princípio da prudência, decorrente de uma espécie de “hermenêutica da suspeição” segundo a qual as conseqüências negativas possíveis, embora duvidosas, são tidas como certas (este argumento é defendido pelo filósofo Hans Jonas). No entanto, a prudência pode ser uma coisa muito boa em determinados casos, mas também pode ser muito ruim por poder ter conseqüências catastróficas e, neste caso, devemos justificar a omissão por sermos moralmente imputáveis tanto pelo feito como pelo omitido, o que está claramente inscrito na condenação moral e jurídica por “omissão de socorro”. Ou seja, embora a prudência possa ser considerada prima facie uma virtude moral (isto é válida a menos que existam valores julgados mais importantes), às vezes é preciso desrespeitá-la e tomar uma decisão e, para tomá-la, é preciso ter claro a justificativa ética para essa ação (ou sua omissão). Assim, se temos a possibilidade de mudar a nossa biologia em prol de uma melhor qualidade de vida e de saúde (como já permite a medicina genômica e promete a proteômica) e não o fazemos, poderemos ser declarados responsáveis, pelas gerações futuras, por não termos tomado essa decisão fundamental quando poderíamos tê-la tomada (um pouco como Pôncio Pilato). Isso implica que, do ponto de vista ético, somos responsáveis não só pelo mal que fazemos, mas também, por omissão, pelo bem que poderíamos ter feito e não fizemos.

Assim sendo, pode-se afirmar que, do ponto de vista bioético, o ser humano não só tem o direito de interferir nos processos naturais, como também tem essa necessidade vital que pode ser eticamente defendida. Caso contrário, não haveria progresso, nem civilização. Portanto, o problema não é se intervir, ou não, mas como interferir nesses processos naturais e dizer quais são as precauções que devem ser tomadas para que isso não se reverta em algo negativo.

Do ponto de vista ético, não vejo nenhuma razão sólida para não fazer a clonagem humana, seja reprodutiva ou terapêutica. Não vejo problemas, por exemplo, numa mulher, que não pode ter um bebê pelo método natural, optar por ter uma criança supostamente igual a ela ou ao seu parceiro, através da clonagem. De qualquer maneira essa “igualdade” morfológica não implica a sua “igualdade” em todas as dimensões do humano (psicológica, cultural, etc.), pois essas outras dimensões são o produto da interação com o meio ambiente, o meio cultural e social. O que faz a identidade propriamente humana é de fato o produto das intricadas interações eco-bio-psico-socio-culturais (como se diz). Portanto - costumam dizer os lógicos (e isso já era um argumento utilizado pelos escolásticos) – a identidade no sentido do “idêntico” (latim idem) não é a mesma coisa da identidade no sentido do “mesmo” (latim ipse): um clone meu pode ser idêntico a mim, mas não ser o mesmo que eu da mesma maneira que um clone de Hitler (contrariamente à mensagem passada pelo filme “meninos do Brasil”) não será necessariamente nazista nem um clone de Jesus Cristo será necessariamente cristão!

Ademais, do ponto de vista biológico, existem seres idênticos por processos naturais: os gêmeos homozigotos ou univitelinos, os quais têm o mesmo patrimônio genético mas personalidades diferentes. Se condenarmos os clones isso implicaria no fato de que criar dois seres iguais seria também moralmente reprovável, mas isso seria razoável? Mudando de linguagem: vamos dar uma reprovação moral à natureza? Pensando dessa forma, todos os gêmeos univitelinos do mundo seriam considerados uma espécie de aberração do ponto de vista moral. Acho que adotar esse caminho é muito perigoso, porque ele é discriminador. Temos que tomar muito cuidado para não sermos discriminatórios em relação aos assim chamados idênticos, o que seria tão reprovável como discriminar os “diferentes”! Para mim, a bioética, além de ser uma disciplina acadêmica, tem um papel muito importante em tentar evitar todas as formas discriminatórias possíveis: por isso é uma ética aplicada com forte preocupação democrática. Além disso, a bioética tem que aplicar valores ou princípios morais que sejam os mais gerais possíveis, para não criar éticas ad hoc, o que implicaria também em discriminação e injustiças. Portanto, se eu discrimino os clones, vou necessariamente discriminar os idênticos, como são os gêmeos.

No fundo, tanto a clonagem terapêutica como a reprodutiva são como qualquer outra técnica médica: preventivas ou reparadoras, e a prevenção é importante do ponto de vista da saúde pública. Com efeito, os testes preditivos conseguem detectar probabilidades de adoecimento, o que é positivo numa política sanitária preventiva. No entanto, deve-se ter prudência para não discriminar os eventuais portadores de doenças futuras. Para que os testes preditivos não sejam usados de modo discriminatório e abusivo, é preciso que se tenham mecanismos de controle social, como leis específicas.

Para mim, como para muitos bioeticistas, a questão mais problemática da clonagem é a sua utilização para melhorar a linhagem. Essa questão pode ter conseqüências nefastas, pois se poderia em tese querer criar uma linhagem de “super-homens”, com características muito diferentes daquelas dos demais humanos, supostamente mais adaptados a condições naturais adversas e mais performantes em termos de inteligência, força física, capacidade laboral, etc. Isso pode ser muito complicado de vários pontos de vista, uma vez que seria preciso, por exemplo, monitorar os eventuais “defeitos” implicados pelas mutações genéticas a longo prazo; evitar abusos de poder de uma “casta” sobre as demais (os “fortes” sobre os “fracos”, os “bonitos” sobre os “feios”, os “inteligentes” sobre os “burros”... ou vice-versa), etc. Para seres humanos, que têm longo ciclo de vida, seriam necessárias várias gerações para detectar, por exemplo, os aspectos negativos resultantes dessa mutação, monitorá-los e mantê-los sob controle. Portanto, isso implicaria numa espécie de “policiamento” de muito tempo, que pode implicar em formas tirânicas insuportáveis. Por outro lado, é importante refletir sobre o que significam a educação, a boa higiene, a prática de esportes e tantos outros conselhos que damos às pessoas e que, em alguns momentos, impomos a nossos filhos. Esses “conselhos” nada mais são do que uma forma de tentar melhorar o ser humano. Todos os sistemas educativos tentam, de alguma forma, melhorar o ser humano, inclusive tornando-o capaz de criar soluções criativas para antigos e novos desafios e de ser autônomo. Sem essa competência não haveria, aliás, nenhum progresso científico, nem teríamos chegado à discussão atual sobre a moralidade da clonagem! Comparativamente, hoje, vivemos melhor e temos maior expectativa de vida do que antigamente, o que não nos impede de querermos melhorar ainda, inclusive utilizando a clonagem. No entanto, devido aos problemas técnicos ainda sem respostas claras, a clonagem reprodutiva deve por enquanto ser encarada como uma possibilidade futura.

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Notas

[1] Artigo publicado no jornal arte & política, ano V, número XV, de 26 de julho de 2002, pp. 4-5.

[2] PhD. Bioeticista, Pesquisador Associado da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz, ENSP/FIOCRUZ, e Consultor em bioética do Instituto Nacional do Câncer, INCA.

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