sexta-feira, 10 de abril de 2009

Trecho do Livro: O Homem que Queria Salvar o Mundo

De Samantha Power

Em 6 de abril de 1992, Sergio Vieira de Mello, Bos e Andrew Thomson partiram acompanhados por um especialista em desativação de minas, um engenheiro agrícola e Udo Janz, o chefe do escritório do Acnur em Battambang, a segunda maior cidade do Camboja. Lynch e Jahanshah Assadi viriam de carro do território tailandês e se juntariam a Vieira de Mello e aos demais no acampamento-base do Khmer Vermelho.

Penetrando em território perigoso, a equipe da ONU não revelara seus planos à escolta armada cambojana. Mas, ao se aproximarem do rio Mongkol Borei, um dos soldados que o governo de Hun Sen providenciara exclamou:

“Vamos parar por aqui. Isto é suicídio!”.

Eles nunca haviam margeado o território do Khmer Vermelho e abandonaram às pressas o grupo da ONU.

A ponte que a equipe das Nações Unidas havia sido instruída a atravessar fora explodida. Sobre um barranco na orla do território do Khmer Vermelho, o pessoal lançou um olhar sobre Vieira de Mello, à espera de uma orientação. Seu plano começou a parecer ambicioso demais e, ao mesmo tempo, absurdamente amador. Mas de repente ele apontou para o outro lado do rio.

“Olhem!”, exclamou. “Eles estão aqui!”

Sobre o barranco a margem oposta do rio viram três soldados do Khmer Vermelho, carregando Kalashnikovs e trajando quepes Mao, uniformes cáqui e suas bandanas típicas.

“Vá falar com eles, Doutor”, ele instruiu Thomson, o único falante de khmer do grupo. “Veja se são nossos guias.”

Thomson lançou para Vieira de Mello um olhar de descrença. Desde a sua mudança para o Camboja, em 1989, o neozelandês vinha tendo um pesadelo recorrente, influenciado pelo filme vencedor de três Oscars Os Gritos do Silêncio. No sonho, enquanto dormia em sua barraca no hospital da Cruz Vermelha australiana, um grupo do Khmer Vermelho de uniforme preto atravessava um arrozal, entrava pelos fundos da barraca, o arrastava para fora e o executava. Nos dois anos que passara no Camboja antes de ingressar na ONU, nunca deparara com um soldado do Khmer Vermelho e jurara para si mesmo que jamais o faria. Conquanto o acordo de Paris estipulasse que funcionários da ONU iriam trabalhar com os maoístas, Thomson já vivera tempo demais entre os cambojanos para poder ignorar o passado sangrento dos guerrilheiros. “Queriam que tratássemos o Khmer Vermelho como os outros partidos”, ele recorda, “mas eles não eram como os outros. Eles eram assassinos em massa.” Mesmo assim, o entusiasmo de Vieira de Mello pela aventura fora tão contagiante, e a defesa para Thomson de sua indispensabilidade tão persuasiva, que o médico subitamente se viu convocado para travar conversa com um membro de uma milícia famosa por atirar sem fazer perguntas.

Thomson desceu um barranco de seis metros de altura rumo ao rio raso abaixo. Na metade do rio, mudou de idéia e ficou paralisado. “Mer*da”, disse para si mesmo, “posso continuar avançando e levar uma bala no peito, ou posso dar meia-volta agora e levar um tiro pelas costas.” O soldado na outra margem baixou o olhar para ele, mas, devido ao sol atrás de sua cabeça, o médico só conseguiu discernir a silhueta do soldado, e não sua expressão facial.

“Ei”, Thomson disse em khmer, tremendo de medo. “Vocês são o Khmer Vermelho?”

O soldado concordou com a cabeça.

“Onde está a ponte?”, Thomson perguntou.

O soldado olhou para baixo e respondeu indiferente:

“Não tem ponte. Vocês têm que atravessar o rio”.

Os funcionários da ONU teriam que supor que o leito do rio estava livre de minas se quisessem continuar sua jornada.

Se os membros da equipe deixassem seus veículos para trás, estariam totalmente dependentes do Khmer Vermelho. Sem as antenas de longo alcance dos Land Cruisers, seria impossível manter contato por rádio com a base da ONU. Alguns dos funcionários carregavam rádios portáteis, mas sem o mesmo alcance, e com baterias de pouca duração. Vieira de Mello deu de ombros, arregaçou as calças e foi em direção a Thomson. Os outros o seguiram, sabendo que, assim que cruzassem o rio, estariam penetrando no desconhecido.

Enquanto os funcionários da ONU transpunham, em fila indiana, as águas, carregando suas pequenas mochilas com mosquiteiros, cadernos e água engarrafada, a tensão e o absurdo do encontro fizeram com que alguém no grupo desse uma risada nervosa, logo imitada pelos outros. Quando terminaram de atravessar o rio, a equipe inteira estava às gargalhadas. A expressão no rosto dos seus guias circunspectos do Khmer Vermelho não mudou.

Os soldados conduziram a equipe das Nações Unidas por um caminho de mais de três quilômetros floresta adentro, alertando que não saíssem da trilha porque a mata estava repleta de minas. Ao longo do caminho, os funcionários da ONU viram lançadores de foguetes, pilhas de munições e casamatas.

“Esse é o desarmamento da ONU!”, Vieira de Mello exclamou. Apanhou uma câmera e começou a tirar fotos dos soldados ao lado de suas armas. Thomson, que continuava perturbado, disse:

“Sergio, sei muito bem que você não está querendo tirar fotos. Afinal, eles são o Khmer Vermelho!”. Vieira de Mello achou engraçado.

“Claro que quero, Doutor. Talvez nunca mais tenha essa chance.”

O grupo chegou a um caminhão-plataforma chinês e recebeu instruções de subir. Enquanto o caminhão percorria um matagal cada vez mais denso, Vieira de Mello usava toalhas de papel para se manter limpo. Após cerca de duas horas de viagem em meio a bambus com altura de um prédio de três andares, o caminhão entrou num acampamento onde duzentos soldados da facção estavam enfileirados como que para uma inspeção. A equipe da ONU havia atingido o acampamento do Khmer Vermelho.

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