quarta-feira, 8 de abril de 2009

Trabalho do ACNUR nos anos 90

Entre 1991 e meados de 1992, mais de 250.000 pessoas fugiram do Myanmar (antiga Birmânia) para o vizinho Bangladesh. Quase todos os refugiados eram Rohingyas, um grupo minoritário muçulmano vivendo num país maioritariamente budista. Apesar de não se encontrarem disponíveis estatísticas rigorosas, crê-se que os Rohingyas constituam pouco menos de metade da população do país, estimada em cerca de 4.5 milhões de pessoas.

Quando se iniciou o êxodo de refugiados, os recém-chegados ao Bangladesh afirmavam que tinham sido sujeitos a uma diversidade de violações dos direitos humanos, por parte das forças de segurança do Myanmar. De acordo com as denúncias dos refugiados, estes abusos tinham lugar no âmbito de tentativas de recrutar carregadores militares e trabalhadores não remunerados para projectos de obras públicas, bem como de esforços visando recolocar a população muçulmana no interior do Estado Rohingya. O Governo do Myanmar tem negado estas acusações.

    Desde os primeiros dias do êxodo, tornou-se óbvio que o repatriamento voluntário era a única solução viável para a maioria dos refugiados. Mas antes que o ACNUR pudesse participar no processo de repatriamento, a organização tinha que ter a certeza de que os refugiados desejavam regressar e que, uma vez regressados a casa, a sua segurança e bem-estar poderiam ser verificados.



Papel proactivo

    Durante muitos anos, o momento oportuno para o envolvimento do ACNUR nos programas de repatriamento voluntário era, em larga medida, determinado pelos próprios refugiados. Estes decidiam quando queriam regressar e recebiam protecção e assistência da comunidade internacional até ao dia em que optavam por fazê-lo. Contudo, durante os anos 80, o ACNUR começou a desempenhar um papel mais proactivo na procura de soluções, prestando activamente assistência a refugiados no seu regresso e reintegração, assim que a situação no seu país tivesse melhorado substancialmente.

    Mais recentemente, a implementação de acordos de paz alargados num conjunto de países, que tinham sido devastados pela guerra, supervisionados por forças de manutenção da paz das Nações Unidas e por pessoal civil, permitiram que o ACNUR pudesse ir um passo mais longe no processo de repatriamento. Assim, em países como o Camboja e Moçambique, os programas de repatriamento da organização têm sido baseados no pressuposto de que a grande maioria dos refugiados será capaz - e deseja - regressar ao seu país e participar na eleição de um novo governo.

    A questão da segurança e do carácter voluntário do repatriamento têm sido mais problemáticas em relação à situação dos refugiados Rohingyas. Do lado da fronteira do Bangladesh, o ACNUR não teve inicialmente um acesso total aos campos onde os refugiados tinham sido instalados. No Myanmar, ao contrário do que aconteceu com o Camboja e com Moçambique, a situação política permaneceu inalterada ao nível nacional. Acresce que o ACNUR não tinha uma presença no país e não pôde, por isso, verificar a situação no interior da região de origem dos refugiados.

    O repatriamento dos refugiados para o Myanmar foi ainda mais complicada devido a factores de ordem social, económica e jurídica. As pessoas que fugiam para o Bangladesh eram sobretudo camponeses sem terra, com fracas oportunidades geradoras de rendimentos no Estado Rohingya. Devido à leis de nacionalidade do país, os Rohingyas não são, geralmente, reconhecidos como nacionais do Myanmar, nem têm o direito de circular livremente no interior do pais.

    A maioria da população do Myanmar olha geralmente os Rohingyas como estrangeiros, o que tem sido reforçado por um conjunto de diferentes factores: a origem persa e árabe dos Rohingyas, a sua lealdade para com os ingleses durante o período colonial, o receio da imigração ilegal do Bangladesh, país muçulmano sobrepovoado e arruinado, bem como a preocupação com a segurança colocada pela existência de dois grupos rebeldes armados Rohingyas que, segundo se afirma, são apoiados por governos estrangeiros. A integração deste grupo após o seu regresso prometia, deste modo, ser uma tarefa difícil.

    Apesar de todas estas incertezas, em Abril de 1994, o ACNUR deu início a um programa de repatriamento organizado, que permitiu a muitos milhares de pessoas regressarem a casa sob os auspícios da organização. A manter-se o actual nível de regressos, a vasta maioria dos refugiados regressará ao Myanmar antes do final de 1995.



Opções de longo prazo

    A prontidão com que o ACNUR organizou este programa de repatriamento - e a vontade dos refugiados em nele participarem - resulta de diversas considerações.

    O Bangladesh é um dos países mais pobres e mais densamente povoados do mundo, não dispondo nem de terra, nem de recursos que permitam absorver tantas pessoas. A integração local neste país não constitui, por isso, uma opção de longo prazo realista.

    O programa reúne um conjunto de garantias. De acordo com os actuais procedimentos, os refugiados manifestam a sua vontade de regressar ao Myanmar, inscrevendo-se no programa de repatriamento. Uma vez registados, são livres de mudarem de opinião a todo o momento, qualquer que seja o motivo, antes de atravessarem a fronteira - direito que muitos refugiados têm exercido, normalmente devido a um motivo temporário, nomeadamente por doença de um dos membros da família.

    No Myanmar, o governo convidou o ACNUR a estabelecer uma presença, quer na capital, Yangon, quer no próprio Estado Rohingya. Consequentemente, a organização encontra-se agora numa posição que lhe permite supervisionar o bem-estar dos retornados. Ao mesmo tempo, o ACNUR fornece aos refugiados alimentos, subsídios em dinheiro e outras formas de assistência individual, no momento do seu regresso ao Myanmar, e leva a cabo programas de reabilitação baseados na comunidade nas suas regiões de origem. De acordo com o pessoal do ACNUR colocado na região, estas iniciativas têm desempenhado um papel crucial em relação à vontade dos retornados regressarem ao Myanmar. Embora a sua situação no Estado Rohingya possa não ser fácil, os refugiados parecem ter reconhecido que é melhor regressarem a casa e beneficiarem da presença e dos programas do ACNUR, do que permanecerem em campos de refugiados que não lhes podem oferecer qualquer futuro.



O Regresso involuntário

    O envolvimento do ACNUR no regresso de refugiados ao Myanmar tem assumido um significado particular em face dos acontecimentos que antecederam o lançamento do programa de repatriamento da organização. Em Abril de 1992, os governos do Bangladesh e do Myanmar assinaram um acordo bilateral, sem a participação do ACNUR. Cinco meses depois iniciou-se o repatriamento de refugiados para o Myanmar e, em Outubro de 1992, o ACNUR recebeu formalmente autorização para entrevistar os refugiados e avaliar a natureza voluntária do seu regresso. Contudo, a organização renunciou rapidamente a este papel, devido às dificuldades de acesso aos refugiados, bem como a denúncias generalizadas de que estes estaríam a ser sujeitos a abusos por parte de funcionários dos campos e de que estaríam a ser forçados a regressar ao Myanmar.

    O ACNUR e outros membros da comunidade internacional protestaram vigorosamente contra estes desenvolvimentos, tendo as violações subsequentemente cessado e os funcionários em questão sido demitidos das suas funções. Ao mesmo tempo, o ACNUR negociou novos acordos com as autoridades do Bangladesh, que concederam à organização um melhor acesso aos campos, permitindo que o pessoal do ACNUR entrevistasse potenciais retornados.

    Em Novembro de 1993, após o regresso de quase 50.000 refugiados, ao abrigo do programa de repatriamento bilateral, as autoridades do Myanmar concederam ao ACNUR acesso também ao Estado Rohingya. Subsequentemente, a organização foi autorizada a circular livremente na região (apesar de tal poder ser difícil em termos logísticos), bem como a supervisionar a situação dos retornados. Os esforços do ACNUR para ajudar os retornados na sua reintegração no Myanmar, através de projectos nos sectores do abastecimento de água, saúde, educação e projectos geradores de rendimentos, oferecem outros meios de promover e supervisionar o bem-estar de ex-refugiados. Em meados de 1995, o ACNUR não tinha encontrado quaisquer provas que sugerissem que os retornados tivessem sido sujeitos a perseguição ou discriminação, apesar de terem ocorrido alguns incidentes, envolvendo a detenção e recolocação de antigos refugiados.

    Apesar destes resultados encorajadores, duas importantes questões continuam por resolver. Em primeiro lugar, um número desconhecido de refugiados, mas ao que tudo parece relativamente pequeno poderá optar por não regressar ao Myanmar, devido às suas actividades e alianças políticas. Outra categoria de "casos residuais", cujo futuro terá que ser determinado, integra refugiados residentes em campos e que imigraram ilegalmente do Bangladesh para o Myanmar antes de 1991 e que, consequentemente, não têm o direito de regressar ao Estado Rohingya.

    Uma segunda e talvez mais significativa questão diz respeito à prevenção de futuros êxodos ou expulsões do Myanmar para o Bangladesh. Para prevenir quaisquer futuras ocorrências deste tipo, será necessário desenvolver esforços para oferecer à minoria muçulmana do Myanmar uma maior segurança, protegendo os seus direitos humanos, melhorando o seu estatuto social e político e oferecendo-lhes maiores oportunidades geradoras de rendimentos. Embora o ACNUR procure actualmente abordá-las, em última análise, a responsabilidade por estas questões deve ser assumida pelo país de origem.

Nenhum comentário: