terça-feira, 28 de outubro de 2008

Impasses do Paraíso parte 1

Márcio Scalercio



Impasses no Paraíso:
A crise do Iraque: Clausewitz pode ajudar a vencer batalhas, mas é de muito pouca valia para o trabalho de gendarme.



Como você ousa cochilar à sombra da segurança complacente,
levando uma vida tão frívola quanto as flores do jardim, enquanto
seus irmãos na Síria não têm onde morar, a não ser as selas dos
camelos e as barrigas dos abutres? Sangue foi derramado! Jovens
belas foram envergonhadas (...). Será que os valorosos árabes
devem se resignar ao insulto e os valentes persas aceitar a
desonra(...). Jamais os muçulmanos foram tão humilhados.
Nunca suas terras foram tão selvagemente devastadas (...).

(Trecho do discurso do venerável cádi Abu Saad al-Harawi, ao califa de Bagdá, anunciando a invasão da Primeira Cruzada contra a Síria e Palestina em 1099 d.C e convocando o Comandante dos Crentes a reagir. O venerável cádi exibia sua cabeça raspada, nua por causa do luto. Citado de ALI, Tariq. Confronto de fundamentalismos. Rio de Janeiro - São Paulo, Record, 2002, pp. 63) .



O discurso proferido pelo venerável Abu Saad , que procurava sensibilizar o califa e os muçulmanos contra a ação dos cavaleiros cristãos invasores, se ajusta perfeitamente ao que se passa nos corações e mentes de muitos dos milhões de muçulmanos que habitam o mundo atual. Este é um dos elementos mais candentes presentes nas crises no Iraque e na Palestina. Ambas renovam a cada dia os descontentamentos e a fúria das massas islâmicas contra o Ocidente. Ambas transtornam as relações internacionais instilando discórdias entre velhos aliados (mesmo entre países ocidentais) e instabilidade no sistema entre as nações. Além disso, contribuem para a desmoralização da ONU, (Organização das Nações Unidas), revelando seus estreitos limites de influência e capacidade de formulação de políticas concretas para solucionar conflitos e crises graves. Finalmente, e porque não ressaltar, lamentavelmente, produzem vítimas fatais e prejuízos materiais por toda a parte, de Cabul a Nova Iorque.
A tarefa dos analistas e estudiosos em momentos como esse é árdua. Se devemos manter o olhar atento aos fulminantes acontecimentos do dia a dia da crise, não podemos deixar de reservar tempo para matutar as primeiras reflexões que a seriedade dos eventos exigem. Além dos lances quotidianos, diariamente exibidos com fartura pela mídia, a produção acadêmica provocada pela crise é tão abundante que a leitura minuciosa de tal quantidade de textos é de difícil execução, mesmo para os estudiosos mais dedicados e empenhados. Portanto, vai-se fazendo o humanamente possível, obedecendo os limites do engenho e as restrições de tempo, pois este fator nem sempre nos pertence inteiramente.
A proposição deste artigo é a de apresentar ao leitor a seguinte questão: enfatizando exclusivamente o cenário da atual crise do Iraque, demonstrar que a admiravelmente bem organizada máquina de guerra norte-americana, remodelada após a Campanha do Vietnã, que obteve com alguma facilidade a desagregação das forças armadas convencionais do Iraque e obrou a ocupação dos centros mais importantes do país, não está à altura da tarefa desejada pela liderança política dos Estados Unidos nesse momento: a de servir de principal suporte para a reestruturação do Estado e sociedade iraquianos que obedeça a um enquadramento entendido como viável aos interesses das Potências Ocidentais. O que se vai fazer aqui é um exercício de reflexão centrado em estudos de res militare (coisa militar, assuntos militares), um conjunto de temas em voga desde os tempos de antanho, cujas referências remontam aos textos greco-romanos da antigüidade clássica. A tradição que nutre a relevância de tais assuntos foi reforçada em nossos dias, dentre muitas outras razões, pelo fenômeno da liderança política dos EUA insistir em usar o poder militar como ferramenta fundamental de política externa.
Para que tenhamos uma idéia inicial dessa realidade, basta perceber que, durante os 50 anos de Guerra Fria, os EUA fizeram uso de seu poder militar no exterior por 16 vezes, enquanto que desde 1990, com a desagregação da URSS, forças norte-americanas se envolveram diretamente em conflitos internacionais pelo menos em 46 oportunidades (incluímos nessa contagem a Guerra do Iraque no ano de 2003)[1].

[1] Essa contagem é de Philip Bobbit e não temos razão para desconfiarmos da mesma. O cálculo do autor deixa de fora a Guerra no Iraque porque seu livro foi publicado em 2002. Ver: BOBBIT, Philip. A Guerra e Paz entre as Nações. Rio de Janeiro, editora Campus, 2002, pp. 235.

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