terça-feira, 28 de outubro de 2008

Impasses no Paraíso parte III

Forças ativas dos EUA – 1990[1]

18 divisões do Exército
9 brigadas expedicionárias dos Marines
15 grupamentos de combate de porta aviões da Marinha
22 brigadas aéreas táticas da Força Aérea

Forças Ativas dos EUA – 2000

10 divisões do Exército
5 brigadas expedicionárias dos Marines
11 grupamentos de combate de porta aviões da Marinha
13 brigadas aéreas táticas da Força Aérea

As informações mencionadas carecem de alguns esclarecimentos adicionais. No caso do Exército, as divisões são as “grandes unidades” da força. Isso significa que possuem toda a estrutura necessária para operar de modo independente – isto é, uma divisão é constituída por um setor de comando com estado-maior completo, corpo de saúde, unidades de engenheiros, trem de transporte, artilharia divisionária, flotilha de helicópteros de apoio, etc. Segundo a reforma implementada durante o período Clinton, as divisões estão distribuídas em 5 leves (light divisions) e 5 pesadas (heavy divisions). Dentre as divisões leves destacam-se a 82°, a 101° aerotransportadas e a 10° divisão de montanha de Nova Iorque. Estas seriam, fundamentalmente, as grandes unidades de intervenção rápida do Exército. Uma divisão pode ter entre 10 mil e 18 mil homens, agrupados em 3 brigadas de combate. As divisões pesadas organizam-se em torno de regimentos de tanques de batalha. O exército conta também com unidades de menor porte, independentes das divisões. São tropas consideras aptas para operações especiais, tais como os Rangers , (organizados em 3 batalhões ligeiros), os Boinas Verdes (organizados em cinco grupos especiais cujos números são variados), o 160° Regimento de Operações Especiais de Aviação (provavelmente contendo 3 batalhões) e o Destacamento Delta (também conhecido como Delta Force), unidade sobre a qual nunca se sabe muita coisa.
As forças navais por seu lado, dispõem em termos de embarcações de combate, de 12 porta-aviões de ataque (dentre eles, 8 nucleares), 27 cruzadores, 54 contratorpedeiros, 35 fragatas, 132 porta-helicópteros, 50 embarcações para operações anfíbias e uma frota de 54 submarinos nucleares. Os grupos de batalha da marinha (task force) se organizam em torno dos porta-aviões (cada um deles transportando em média 70 aeronaves), sendo que os submarinos habitualmente atuam de modo independente. As brigadas dos Marines estão agrupadas em 3 divisões. A maior delas é a 1°Divisão que conta com 18.250 oficiais e soldados (quadros completos). As unidades de Marines possuem ainda sua própria aviação de apoio (sediada de um modo geral nos porta-aviões), helicópteros de reconhecimento, transporte e combate, bem como batalhões de tanques de batalha. Os efetivos totais do US Marine Corps, perto de 200 mil integrantes, perfaz a maior força de intervenção rápida e projeção de poder do mundo.
Finalmente as brigadas táticas da Força Aérea passaram a se organizar em Aerospace Expeditionary Force (AEF), cada uma delas contendo alas de aeronaves de caça, bombardeiros (médios e pesados), aeronaves de apoio aproximado, reconhecimento e transporte. Cada AEF inclui 15 mil homens e por volta de 175 aviões. As aeronaves de altíssima tecnologia, os famosos “aviões invisíveis” (isto é, dificilmente detectados pelos aparelhos de radar) costumam integrar esquadrilhas especiais.
As reduções demonstradas nas tabelas acima, ocorreram principalmente no decurso das duas administrações democratas do presidente Bill Clinton. Para termos idéia da ordem de grandeza em números absolutos, o pessoal militar que em 1990 alcançava um efetivo de 2.070.000, caiu em 1999 para um efetivo de 1.453.000. Embora entre o fim da Guerra Fria e o advento do 11 de setembro, tenha havido uma redução nos gastos militares dos EUA – retomados em escala crescente após os ataques à Nova Iorque e Washington, a redução de efetivos pode não necessariamente significar uma diminuição dos gastos militares correspondentes. Mesmo que no orçamento, os gastos com pessoal tenham diminuído, as despesas com pesquisa e desenvolvimento certamente cresceram sobremaneira.
A questão é que a escolha de apostar em equipamentos de alta tecnologia aumenta bastante a cadeia de custos. Estamos falando das verbas destinadas às universidades e às empresas para pesquisas, desenvolvimento de protótipos, testes e tudo mais. Acrescentemos o tempo mais longo indispensável para o treinamento do pessoal militar destinado a operar os engenhos. Finalmente não podemos esquecer das despesas de manutenção dos equipamentos (muitos deles sensíveis) e a reposição de perdas por causa de acidentes ou em combate. Esse aumento de custo tecnológico é em parte compensado pela redução das quantidades de munição usadas durante as campanhas (a maior precisão conduz, tanto a um número menor de sortidas (missões das aeronaves) para destruir o alvo quanto uma quantidade menor de bombas), e também economiza vidas entre os combatentes, pois o apoio de fogo aproximado mais preciso, bem como a capacidade de “decapitar o adversário”, quer dizer, destruir seu centro de comando e controle, diminui consideravelmente sua capacidade de resposta e coordenação das forças em combate.
Nem precisamos entrar em detalhes para que o leitor se recorde que este foi exatamente o tipo de campanha que os EUA, auxiliados pela Grã-Bretanha, empreenderam contra o Iraque em março-abril de 2003. Graças à formidável cobertura proporcionada pelos mísseis Tomarrock Cruise (para ataques de média distância) e pelas aeronaves e helicópteros de combate, unidades de terra bem pouco numerosas e dotadas de excepcional mobilidade puderam levar a cabo a campanha enfrentando um número muito pequeno de contratempos. Em termos de número de tropas, as forças atacantes jamais somaram mais de 160 mil homens (acrescentemos a esse montante por volta de 22 mil britânicos). O Exército iraquiano por seu lado, brilhou pela ausência. O fato é que pouco poderia fazer contra o aparato reunido pelos EUA. Suas tropas de terra não contavam com qualquer cobertura aérea. As posições de artilharia eram rapidamente localizadas e duramente bombardeadas. Qualquer tentativa de concentração de unidades, seja para a defesa estática, seja para efeito de contra-ataque, estava fadada a sofrer o mesmo destino. Finalmente, os centros de comando e controle, devidamente localizados pelo serviço de inteligência norte-americano receberam golpes demolidores logo nos primeiros dias.
Ainda não temos (pelo menos não até o presente momento) uma estimativa clara das baixas sofridas pelas unidades iraquianas durante o conflito. Supomos que esse número seja inferior às perdas em vidas humanas ocorridas na Guerra do Golfo de 1990/91. Também não temos como avaliar se a resistência tênue oferecida pelas forças armadas do Iraque foi fruto de uma decisão do regime em ordenar que suas tropas se dispersassem, já que um enfrentamento encarniçado do dispositivo militar norte-americano seria simplesmente inútil. Mesmo que o Exército iraquiano, em termos de preparo e eficiência, jamais tenha sido grande coisa (sua atuação na Guerra Irã – Iraque atesta este ponto), imaginamos que parcela de seus oficiais comandantes soubessem avaliar corretamente a desproporção das forças e aconselhado o regime a salvar o que fosse possível.
Sabe-se que durante a ofensiva anglo-americana de março de 2003, grande quantidade de dinheiro foi sacada de bancos iraquianos por autoridades governamentais. Providos de um “colchão protetor de dinheiro” e tendo o cuidado de espalhar depósitos de armas e munições em vários pontos do país, as condições para dar início a uma campanha de fustigação contra os adversários estariam lançadas.

Impasses no Paraíso: os limites do novo padrão militar dos EUA e a hora e a vez da política

O parágrafo anterior pode servir de fonte para entendermos o que anda a acontecer agora no Iraque ocupado. Grupos de integrantes das forças armadas iraquianas dispersos, podem estar por trás de pelo menos uma parte do movimento de resistência contra as tropas da coalizão. As autoridades do Pentágono tem insistido neste ponto. Na verdade, dão a entender que este seria o centro nervoso do sistema de resistência. Daí a importância de capturar os personagens do baralho distribuído aos soldados – as figuras chaves do regime deposto. Por enquanto o Pentágono afirma confiar na tática do aprisionamento ou eliminação destes elementos, indicando sua crença que uma vez neutralizados a resistência se enfraqueceria a ponto de tornar-se irrisória.
Outros (especialmente as autoridades inglesas), alegando conhecimentos mais amplos da história e das contradições que dividem os povos do Iraque, se recusam a emprestar credibilidade a um quadro tão confiante e simplista. Sunitas, grupos xiitas e líderes tribais podem perfeitamente articular a formação de unidades independentes, sem qualquer relação com os adeptos do antigo regime, e partir para a luta por conta própria. Existem ainda dois complicadores adicionais: o primeiro, devido ao colapso do sistema de segurança pública do país, constitui-se o cenário ideal para que se alastrassem práticas de banditismo puro. É possível que algumas dezenas de grupos armados estejam imbuídos unicamente do desejo de praticar pilhagens. Em seguida, o colapso dos serviços públicos do Iraque – que na verdade desde a Guerra do Golfo jamais voltaram a funcionar a contento – inspira grande descontentamento entre a população, o que serve de combustível para sobressaltos, ações espontâneas e não-organizadas contra os ocupantes. Em última análise, muita gente no Iraque entende que os causadores de suas agruras atuais mais graves são as autoridades e as tropas de ocupação, e não o regime deposto.
Ainda segundo os britânicos, o tipo de conduta a ser seguida no Iraque só pode ser a da atividade de contra-insurgência. Antes de mais nada, só mesmo um meticuloso trabalho de inteligência obraria a tarefa preliminar de mapear a identidade e a estrutura dos grupos da resistência iraquiana. Só que é muito difícil ser “inteligente” no Iraque. A relação entre as tropas de ocupação e a população tem se pautado mais pela animosidade do que pela estreita colaboração. Para muitos dos soldados da Coalizão, viver no Iraque é tão martirizante quanto passar uma temporada em outro planeta. O estranhamento cultural é notável. Segundo o jornal britânico The Guardian, os líderes militares em Washington já teriam mobilizado um exército de antropólogos, sociólogos e especialistas em cultura árabe, Islã e sociedade iraquiana para montar algum tipo de estratégia que sirva de suporte para melhorar as relações entre soldados e população civil. Não se sabe quanto tempo levará para que os resultados desses estudos comecem a surtir algum efeito nas ruas de Bagdá.
Uma outra possibilidade é a de encontrar um “Gunga Din”. Explico: o escritor Rudyard Kipling, sempre preocupado em descrever como o homem branco se virava para carregar seu “fardo” de “libertar os povos nativos das trevas do arcaísmo e da ignorância”, criou um personagem, um amigável corneteiro indiano chamado Gunga Din. Tratava-se de um cipaio – soldado nativo treinado por europeus – que manifestava grande identificação em relação aos sahibs britânicos. O ponto alto de sua carreira foi quando, em campanha, ao perceber que um regimento escocês (com gaitas, saiotes e tudo o mais) estava para ser emboscado por indianos tribais ocultos nos penhascos, galgou um dos mais altos picos e, tocando estridentemente seu clarim, alertou os escoceses do perigo. Os tribais irritados, crivaram Gunga de tiros. Este tombou, com a corneta nos lábios, dando a vida pelo regimento. Os líderes da coalizão, agora, em pleno século XXI, podem perfeitamente estar à procura no Iraque de alguns punhados de Gunga Dins, iraquianos identificados com os projetos ocidentais para o país e com disposição de “dar a vida pelo regimento”. Literalmente aliás, pois os grupos de resistência demonstram claramente que um dos alvos preferidos de seus ataques são os prováveis Gungas, com ou sem cornetas.
Nesse sentido, a questão de fundo do cenário atual, é que o dispositivo militar colocado em ação e que obteve uma vitória tão fácil contra as forças do ex-presidente Saddam Hussein, é ineficaz para enfrentar todo o quadro de confusão descrito acima. A tecnologia de última geração poderá auxiliar muito pouco o trabalho de polícia exigido às forças de ocupação nesse momento. Mas não nos enganemos em pensar que tudo se resolveria caso centenas de milhares de policiais bem treinados pudessem ser transferidos para o país. Isso ocorre porque nem a alta tecnologia, nem mesmo a polícia são capazes de substituir a política.
Os Estados Unidos que derrotaram o Iraque no campo militar, dificilmente tem condições hoje de oferecer uma política viável (isto é, palatável para a ampla maioria das forças políticas iraquianas) de reordenamento do país. Os equilíbrios internos do Iraque, anteriormente só mantidos pelo governo de força de Bagdá foram embaralhados de tal forma que existe uma forte possibilidade do Iraque transformar-se num novo Líbano das décadas da Guerra Civil (anos 70 e 80 do último século). Não temos dúvida que os soldados americanos desfrutam hoje de condições muito mais amplas do que na época da Guerra do Vietnã para se manterem no Iraque por muito tempo. Os apressados devem lembrar-se que a retirada dos soldados americanos da Indochina só ocorreu após perto de 10 anos de intervenção. Nas condições atuais, contando com tropas profissionais e com o auxilio de alguns países aliados – tais como a Grã-Bretanha e a Polônia por exemplo – a ocupação do Iraque tem tudo para se prolongar.
Contudo, ficar muito tempo por lá não implica em qualquer certeza de se conseguir desemaranhar o Nó Górdio político da região. Encontrar interlocutores entre os povos do país, conseguir colaboração em seus projetos de state building, essas são tarefas mais difíceis do que enfrentar 5 divisões da Guarda Republicana de Sadam. Com quem se aliar, e quem são os atores que se sentem inclinados a colaborar com o projeto de Washington, portando liderança suficiente para não temer as retaliações dos grupos opositores e capazes de reunir adeptos para uma reconstrução do Iraque “conveniente”, esse é o eixo político que a ocupação tem grandes dificuldades de concretizar. Para agravar o quadro, as forças de resistência já deixaram bem claro por suas atitudes que estão dispostas a atacar centros de produção importantes e a infra-estrutura do país, pois avaliam que o caos é seu dileto aliado. Não renunciam sequer ao uso de alguma criatividade, como o mundo pode observar através do episódio dos ataques com “burricos lança mísseis” ocorridos no mês de novembro de 2003.
Não pensemos também que a ONU desfrutaria de imediato de um sucesso fulgurante caso por ventura substituísse os EUA nas tarefas de administração e ocupação. O atentado contra a sede das Nações Unidas em Bagdá é uma firme demonstração que no entender de poderosos grupos armados iraquianos, a ONU não passa também de mais um poder estrangeiro e que deve igualmente ser expulso do país. Deixando um pouco as culpas de Sadam de lado, no final, para muitos iraquianos, a ONU orquestrou um apertado boicote contra o país durante uma década inteira. Dificilmente isso poderia ser esquecido. Em outras palavras, o sucesso em efetivar a emergência de uma situação política estável no Iraque seria uma tarefa tão árdua para a ONU quanto vem sendo até agora para os Estados Unidos.
Desse modo, podemos estar mais uma vez diante da tática guerrilheira de, ao enfrentar um adversário formidavelmente mais poderoso, a única forma de continuar a lutar é “atracando-se no seu pescoço”. Uma vez dentro do Iraque, diluídos nas ruelas de Basrah, entre os becos de Bagdá, ou nas escuras estradas entre as colinas do Curdistão, as vantagens da precisão e da alta tecnologia estão anuladas, e o sangue do inimigo pode finalmente ser vertido, mesmo que aos poucos.
O trabalho de “gendarme” sem a necessária condução política não funciona. Os Estados Unidos, seus aliados ou mesmo a ONU podem passar décadas no Iraque e mesmo assim, falhar miseravelmente. Os analistas militares, os cientistas em seus bem montados gabinetes e a soldadesca profissional e bem disposta, elaboraram e colocaram em prática um modo de fazer a guerra em que qualquer adversário que se atrever a permanecer em campo será inevitavelmente destruído. Como de hábito nos assuntos humanos, a resposta ao desafio acaba sendo engendrada, de um modo ou de outro. A resposta dos grupos de resistência iraquianos anda nos ensinando que depois da guerra, só resta a política. Fazer e assegurar a paz de modo adequado pode ser muito mais difícil do que prevalecer no campo de batalha. Apelar para as armas antes de se matutar satisfatoriamente todos os ângulos postos na arena política, pode não só comprometer a vitória, como também nutrir as bases de uma situação muito pior do que a anterior.
[1] Fonte para as duas tabelas, ver: BOBBIT, Philip, Guerra e paz entre as nações. Rio de Janeiro, editora Campus, 2003, pp. 235.

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