Atualizado e Publicado em 11 de janeiro de 2008 às 15:59
Shaku matou pela primeira vez quando tinha 14 anos de idade. Ele aparece à esquerda na foto, ouvindo música como qualquer adolescente. Shaku fez parte da geração de soldados meninos que lutaram e ainda lutam em guerras civis na África. Não são meninos no sentido que atribuímos à palavra no mundo ocidental. Na tradição africana, desde cedo recebem a responsabilidade de defender e alimentar a família e a tribo.Fui ver o resultado da guerra num dos países mais pobres do mundo. Serra Leoa fica na costa da África Ocidental. Se você imaginar uma linha saindo de Pernambuco e avançando oceano adentro, Serra Leoa fica do outro lado do Atlântico.
Logo na chegada, um aviso no outdoor que fica no aeroporto: "Se você não pode nos ajudar, por favor não nos corrompa." Empresas estrangeiras corromperam Serra Leoa. Fomentaram a guerra pelo controle de minas de diamante.
O país viveu uma das guerras civis mais sangrentas da história recente da África. Abu, de camisa laranja, é testemunha viva da barbárie. Ele nunca se envolveu com política. No ápice do conflito, em que diferentes facções disputavam o controle do país, foi capturado pelos rebeldes na zona rural. Teve os braços decepados por um homem armado de facão. Foi solto com a orientação de caminhar em direção à capital, Freetown.
Uma mensagem ambulante aos que apoiavam o presidente de Serra Leoa, que os rebeldes pretendiam derrubar. A guerra civil acabou. Os rebeldes depuseram as armas, depois de um acordo político patrocinado pelas Nações Unidas. A maior força de paz na história da ONU está ajudando a reconstruir o país. As Nações Unidas fracassaram de forma espetacular em Ruanda. Serra Leoa tornou-se exemplo de como a ONU pode agir pela paz.
Houve eleições. Um tribunal julga crimes de guerra, como o que foi cometido contra Abu. No país há cristãos e muçulmanos. Eles convivem pacificamente.
Um dos motivos da guerra foi a disputa pelo controle de grandes minas de diamante. Quando estivemos em Serra Leoa, fomos visitar as jazidas. Ainda hoje o trabalho é semi-escravo. Valas gigantescas são cavadas por homens com pás. Uma Serra Pelada africana. O diamante que sai de Serra Leoa vendido por 100 dólares em Nova York faz parte de uma jóia que custa cinco mil.
As jazidas do país foram tão importantes que mereceram uma visita da rainha Elizabeth. Grandes empresas, de vários paises, manobraram grupos políticos locais pelo controle da riqueza. Deu numa guerra civil que durou mais de uma década, deixou milhares de mortos e feridos. Homens, mulheres e crianças perderam braços e pernas.
O mundo ficou sabendo da existência de Serra Leoa por causa do exército de meninos. Os rebeldes sequestravam adolescentes para lutar. Os garotos cheiravam cocaína, cola, fumavam maconha e estavam prontos para a barbárie.
As vítimas eram, quase sempre, civis inocentes. Entrevistamos Shaku, o adolescente matador. Depois da guerra, passou a viver num orfanato sustentado pela Igreja Católica. O grande sonho dele era ganhar uma bola de futebol. Conseguimos uma com soldados paquistaneses, que serviam às Nações Unidas. Para pacificar o país, os paquistaneses distribuíram mais de dez mil bolas de futebol em Serra Leoa.
Pode se dizer que o futebol ajudou a acalmar o país. A energia dos meninos matadores passou a ser gasta no futebol de areia. Das minas de Serra Leoa sairam 30 bilhões de dólares em diamantes. Ainda assim, na vila mais próxima à jazida que visitamos não há água corrente, nem rede de esgotos.
O povo de Serra Leoa é alegre, gosta de música e ama o futebol. Em Freetown, encontramos um time chamado Brasil. Cada jogador adotou o nome de um craque brasileiro. Numa praia, pudemos ver Romário, Rivaldo e Ronaldo em ação. Britânicos, canadenses e sul-africanos não foram os primeiros a explorar Serra Leoa. O nome do país foi dado pelos portugueses.
Eles entravam mato adentro para capturar escravos. Arrancavam à força os homens das tribos, para exportá-los para as Américas, inclusive o Brasil. Freetown ganhou esse nome porque foi fundada por escravos libertos, que voltaram dos Estados Unidos. Serra Leoa faz parte de nossa história. Apesar da tragédia que consumiu o país, nele eu me senti em casa.
O sorriso maroto dessa gente eu já vi em algum lugar. Acho que foi no Rio de Janeiro ou talvez em Salvador.
Publicado originalmente em 2005
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