Os libaneses adoram dizer que fazem festa mesmo durante as guerras. Nos 15 anos do conflito civil (1975-90), as pessoas tomavam sol nas praias, formavam-se nas universidades, viajavam a negócios, freqüentavam cinemas e jantavam em restaurantes que eram inaugurados ao som de bombas. Alguns episódios da guerra libanesa, porém, chocaram o mundo, que passou a prestar mais atenção neste minúsculo país mediterrâneo. O maior deles foi, sem dúvida, o massacre de Sabra e Chatila, que completa hoje 25 anos.
Nos dias 16 e 17 de setembro de 1982, milícias cristãs entraram nos campos palestinos no subúrbio de Beirute matando entre 700 e 3 mil moradores – há divergência entre o número de mortos, pois muitos corpos foram jogados em valas comuns e outros queimados. A maioria dos mortos era de palestinos, mas também havia muitos muçulmanos libaneses.
Os cristãos queriam vingar-se da morte do presidente Bashir Gemayel – aliado de Israel e morto um dia antes num atentado atribuído, na época, aos palestinos – e não tiveram piedade de quem vivia em Sabra e Chatila. Mataram mulheres grávidas, idosos e crianças. Grande parte das vítimas foi assassinada a facadas.
MATANÇA
Algumas pessoas foram cortadas em pedaços. Homens chegaram a ser decapitados. Mulheres eram estupradas na frente dos maridos. Tudo isso em campos que estavam sob o controle do Exército de Israel, que – comandado pelo então ministro da Defesa Ariel Sharon – ocupava pela primeira e única vez em sua história a capital de um país árabe.
Os militares israelenses observavam os cristãos libaneses massacrando os palestinos, mas nada fizeram para impedi-los. Os portões foram ‘abertos’ para as milícias cristãs. Os militantes da Organização de Libertação da Palestina, que faziam a segurança do campo, haviam deixado Beirute semanas antes.
ÁREAS ESQUECIDAS
Hoje, os campos não ficam à mostra dos turistas que vêm visitar Beirute. Mesmo os moradores não sabem dizer onde começa Sabra e onde termina Chatila. São duas áreas miseráveis e esquecidas atrás de um estádio de futebol na beira da estrada que liga o aeroporto ao centro de Beirute.
Diferentes de outros campos palestinos, Sabra e Chatila não são controlados pelo partido Fatah ou pelo grupo radical Hamas. Há membros dos grupos rivais lá dentro, mas para entrar não é necessário mostrar passaporte ou autorização a nenhum palestino.
Tampouco existem guardas armados com bandeiras palestinas, como ocorre nos campos de Sidon e Trípoli. Imagens de líderes libaneses são mais comuns do que as de figuras palestinas nas ruelas ainda destruídas desses campos, onde crianças amontoam-se para pegar um prato de sopa servido por ONGs.
SOBREVIVENTES
Da população atual, poucos estavam vivos quando ocorreram os massacres. Na sexta-feira, a primeira do Ramadã (mês sagrado para o Islã), o Estado visitou Sabra e Chatila e conversou com alguns dos sobreviventes.
‘O alto-falante da mesquita pediu que ficássemos quietos e nos escondêssemos, pois as milícias cristãs estavam entrando nos campos’, disse Rafiza Hatib, de quase 70 anos. Ela se escondeu na mesquita e disse que, após os ataques, juntamente com outras mulheres, teve de limpar as ruelas que ficaram sujas de sangue. No meio delas, viu várias cabeças.
Sua vizinha, Fátima Islam, viu o próprio cunhado ser decapitado. ‘Eles (o cunhado e a irmã dela) passaram a noite na minha casa e, de manhã, quando tentavam ver o que aconteceu com a casa deles, foram pegos pelas milícias que arrancaram a cabeça dele’, afirmou Rafiza. ‘Minha irmã foi levada e morta em seguida. Eu consegui fugir.’
Adnam Alidawi, que hoje é um dos representantes do Fatah no campo, tinha apenas 20 anos. Perdeu vários amigos no massacre. ‘Tive de esconder-me cada hora em um lugar diferente’, disse. ‘Eles matavam com crueldade, cortando a cabeça ou o corpo em pedaços, estuprando as mulheres. Os ataques duraram dois dias e os israelenses apenas olhavam’, afirmou.
Os simpatizantes das milícias cristãs libanesas defendem-se. Evitando comentar sobre o massacre, Fouad Abu Nader, ex-líder da Falange e sobrinho de Bashir Gemayel, lembrou ao Estado que o tio era um líder carismático que havia sido eleito presidente um dia antes de ser assassinado. ‘Ele era insubstituível para os cristãos libaneses e tinha apenas 34 anos quando foi morto.’
Há um mito segundo o qual os cristãos teriam saído mais fortalecidos da guerra civil se Gemayel estivesse vivo – ele foi sucedido na presidência do país pelo irmão mais velho, Amin, considerado bem mais fraco politicamente.
ALIANÇA COM ISRAEL
Sobre a aliança com Israel, um ex-líder de milícia cristã, que preferiu não se identificar, afirmou que era a única saída para eles. ‘Os muçulmanos podiam ter amparo de vários países árabes. E nós, cristãos, a quem poderíamos recorrer a não ser aos israelenses?’, disse o ex-miliciano, que esteve quatro vezes em Israel para treinamento durante a guerra civil, e hoje mora em Mar Elias, bairro de classe média cristã de Beirute, onde muitos prédios têm a imagem de Nossa Senhora na porta.
Em Beirute, 25 anos após Sabra e Chatila, o ódio de muitos cristãos aos palestinos ainda não diminuiu. Jovens membros das Forças Libanesas – grupo radical cristão libanês – que se encontraram com o repórter do Estado, afirmaram que os palestinos não podem, de forma nenhuma, serem integrados à sociedade libanesa porque isso acabaria com o equilíbrio entre as comunidades.
PALESTINOS
Indagados sobre o que fazer com os palestinos, eles defenderam a expulsão ou até ‘mesmo coisas piores’, que eles não quiseram detalhar. Essa visão, no entanto, é de uma minoria que ainda vive no tempo das milícias. A maior parte dos libaneses não quer a integração plena dos palestinos, mas acha que a saída está em uma negociação internacional e não na eliminação sumária, como em Sabra e Chatila.
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