1. A Nova Ordem Mundial é uma expressão que já não está em voga, pois continuamos a ser assolados por uma incessante desordem em todo o mundo, com o imenso sofrimento que isso implica. Mesmo aqueles que prognosticavam ordem, era sobretudo a aplicabilidade do conceito de paz e segurança internacionais baseado num sistema de estado vestfaliano que perfilhavam. Não iremos, decerto, questionar o sistema de estado vestfaliano, mas temos de levantar a questão de saber em que medida é que este sistema nos está a facultar os instrumentos necessários para abordar conflitos violentos, em especial no interior dos estados, bem como o sofrimento humano envolvido.
2. Logo que foi propagada a "Nova Ordem Mundial", as mudanças que tiveram inicio em 1989 e o conflito interno no Iraque, após a Guerra do Golfo, deixaram claro que os teóricos e observadores de relações internacionais não se debruçaram o suficiente sobre os conflitos no interior dos Estados. Quando lhes foi prestada atenção, já esses conflitos se encontravam classificados segundo a marcada confrontação ideológica da Guerra Fria, a qual tinha imposto certas formas de disciplina interna.
3. Para nós que trabalhamos com refugiados, é evidente que o fenómeno dos conflitos internos relacionados com divisões étnicas e sociais, violações de direitos humanos, políticas discriminatórias e má governação, não tem nada de novo. Presentemente, o ACNUR ocupa-se de cerca de 26 milhões de pessoas, das quais 13 milhões são refugiados, 8 milhões de retornados e pessoas deslocadas no interior dos seus próprios países e 5 milhões de outras pessoas abrangidas pela sua competência.
4. Exemplos do nosso envolvimento com refugiados em conflitos de longa duração contam-se, entre outros, os do Ruanda e Burundi, do Uganda, Nigéria, Sri Lanka, Sudão, Birmânia e Iraque. Todos eles produziram fluxos de refugiados variando de algumas dezenas a centenas de milhares de pessoas. Os exemplos acima referidos, na sua maioria, não atraíram, na ocasião, grande atenção internacional.
5. Outros fluxos significativos de refugiados foram gerados por guerras por procuração, conflitos internos alimentados pela rivalidade das superpotências da Guerra Fria, como, por exemplo, em Angola, Moçambique, Afeganistão, Camboja, Nicarágua, noutros países da América Central e no Corno de África. Evidentemente, que as vítimas destas guerras por procuração tinham de ser esquecidas para que nunca fosse atingida a pretensa estabilidade da bipolaridade durante o período da Guerra Fria.
6. Assim, na perspectiva do ACNUR, observamos talvez uma maior continuidade do fenómeno dos conflitos internos do que aquela que a literatura frequentemente evidencia. A forma como agora respondemos a esses conflitos é bastante diferente da que tínhamos anteriormente. Até muito recentemente, salvo apenas algumas excepções, o ACNUR, basicamente, limitava-se a aguardar no outro lado de uma fronteira internacional para receber e proteger os refugiados que fugiam de conflitos. Esta actuação era determinada pelo próprio conceito de protecção internacional de refugiados, o qual era accionado se, e apenas se, as vítimas de perseguição ou dos conflitos violentos fugissem do seu país de residência. Era também ditada pelo conceito de soberania de Estado e pela consequente relutância de uma organização intergovernamental, como o ACNUR, ser vista como demasiado envolvida na situação interna dos países de origem que era geradora de movimentos de refugiados. Pode dizer-se que a Convenção de 1951 relativa ao Estatuto dos Refugiados foi estabelecida sobre a teoria da previsibilidade do sistema de Estado vestfaliano, tendo sido fortemente influenciada pela realidade do mundo bipolarizado da Guerra Fria.
7. Em vez de manter uma atitude reativa, o ACNUR começou a adoptar uma abordagem mais activa. Nos últimos anos, o ACNUR tem estado cada vez mais envolvido em situações de conflito nos Estados prestando assistência e protecção, na medida do possível, a pessoas deslocadas internamente, como no Sri Lanka, Afeganistão, Moçambique, Bósnia, Tajiquistão e Ruanda. Existe uma relação directa entre as deslocações internas e os fluxos de refugiados, já que as causas das deslocações podem ser idênticas, havendo, como única distinção, o facto de no caso das primeiras não se ter atravessado uma fronteira internacional. Isto levanta, contudo, questões difíceis uma vez que tem implicações com a soberania nacional. É condição essencial, o consentimento do Estado em causa para o ACNUR poder exercer a sua função de protecção junto das pessoas deslocadas internamente.
8. Todavia, em muitas circunstâncias, não existe um governo em exercício para dar o consentimento, podendo o país estar a ser governado, de facto, por facções rivais político-militares. Uma outra consequência do predomínio dos conflitos internos sobre as guerras inter-estados tem sido a crescente relutância dos Estados em conceder Asilo aos refugiados.
9. Devemos acrescentar que nunca foi fácil convencer os governos a concederem Asilo, mas tal tem-se tornado ainda mais difícil, principalmente por três razões: a primeira, porque os anteriores fluxos de refugiados estavam frequentemente relacionados com as guerras por procuração da Guerra Fria e os Estados tinham, por vezes, interesse estratégico em acolher populações de refugiados. Outros movimentos de refugiados estavam ligados a guerras de libertação colonial. Os motivos para conceder asilo iam desde a compaixão genuína pelos refugiados até a utilização militar das populações refugiadas. A segunda, porque os governos de África estabeleceram um recorde verdadeiramente notável na concessão de asilo a refugiados e na adesão ao princípio de que a concessão de asilo não deve ser encarada como um acto hostil. Embora ainda possamos encontrar muitos exemplos desta generosidade em África, a simples magnitude dos movimentos e o alastrar de insegurança que se seguiu criou graves tensões. Além disso, a crescente relutância dos governos doadores em pagarem as contas relativas a manutenção de um elevado número de refugiados teve um impacto negativo na boa-vontade dos países em concederem asilo. E a terceira, dado que os países do Norte estão a enfrentar grandes fluxos migratórios para os seus países, que consideram irregulares, tornou-se confusa a importante distinção entre refugiados e imigrantes, corroendo o consenso quanto à importância do asilo.
10. Como consequência destas três razões, foram estudadas alternativas visando proporcionar protecção internacional no interior dos países de origem, como aconteceu no Norte do Iraque, Ruanda e, em menor grau, na Bósnia, tendo sido criadas pela comunidade internacional as chamadas áreas ou zonas de segurança temporária, por vezes sem o consentimento do país em causa, para dar protecção e assistência as pessoas deslocadas dentro dos seus países.
11. Nos últimos anos, verificaram-se também alterações no que se refere à busca de soluções para os problemas de refugiados, i.e., integração local, reinstalação e repatriamento voluntário. Na era da Guerra Fria, foi dada ênfase a reinstalação e a integração local. Até há poucos anos, assumia-se que o repatriamento só poderia ter lugar após se verificar uma mudança significativa de ordem política no país que gerou os refugiados ou depois dum acordo de paz.
12. Hoje, o repatriamento voluntário é considerado a solução mais desejável nas crises humanitárias e foram dados passos significativos para criar condições favoráveis de segurança, condições políticas e de direitos humanos e condições socioeconómicas que permitam aos refugiados e pessoas deslocadas o seu regresso à terra. O repatriamento voluntário está a efectuar-se para áreas relativamente seguras em países mergulhados em conflitos internos, mesmo não existindo um acordo de paz. Os repatriamentos para o Zimbabwe, Moçambique e Camboja pertencem a primeira categoria, i.e., depois do acordo político ou de paz; ao passo que os esforços de repatriamento para o Afeganistão, Somália, Haiti e Ruanda pertencem à segunda categoria, i.e., para áreas relativamente seguras em países ainda instáveis. Por exemplo, o ACNUR prestou assistência ao repatriamento voluntário de cerca de 4 milhões de afegãos desde que se iniciaram os movimentos de regresso em 1989 e a cerca de 900.000 somalis desde 1992. As operações de manutenção da paz tem também contribuído para criar condições para o regresso voluntário e, integrando-as nos acordos de paz, têm-se estabelecido mecanismos internacionais de supervisão para verificar a situação dos direitos humanos, inclusive a dos retornados, no interior dos países, como na Bósnia-Herzegovina, Ruanda e Haiti.
13. Por fim, em alguns contextos, o conceito de responsabilidade de Estado tem regredido. Primeiro, é responsabilidade dos Estados evitarem políticas que conduzam a fluxos de refugiados. Segundo, existe a responsabilidade por parte dos governos de receberem refugiados, autorizando-lhes a entrada, não os reenviando à força para uma situação em que as suas vidas possam correr perigo, bem como de assegurarem normas básicas, ordem e segurança nos campos e acampamentos de refugiados. Terceiro, existe a responsabilidade de Estado no que se refere à recepção dos refugiados - que são seus nacionais - quando regressam a terra. Na realidade, no entanto, os Estados fogem frequentemente às suas responsabilidades, ou simplesmente não tem capacidade para as assumir, como no caso de Estados em situação de falência ou de países que acabaram de sair de conflitos.
14. O número crescente de países enfraquecidos e falidos subjugados por conflitos pode ser sintomático do sistema de Estado dos dias de hoje. Apesar dos teóricos, analistas e políticos terem dedicado uma maior atenção ao fenómeno dos conflitos internos ao longo dos últimos anos, persiste muita incerteza, tanto no que se refere ao diagnóstico como quanto à prescrição. O diagnóstico de um conflito interno continua a ser difícil, já que esta expressão cobre um conjunto complexo de causas em permanente mudança. Também, em geral, sabemos quem são as nossas contrapartes a nível do Estado, mas tal nem sempre é possível para outras categorias ou actores políticos, como no caso de grupos étnicos e religiosos e senhores da guerra. O que é evidente, é o nível intolerável de sofrimento humano e as deslocações forçadas que esses conflitos provocam. Seria melhor se o sector académico e os decisores políticos ao estudarem e analisarem a presente ordem mundial e o sistema de Estado, começassem pelo total reconhecimento de sintomas inadmissíveis para conseguirem chegar a prescrições sólidas para soluções desejáveis.
15. Pelo menos, podemos afirmar com toda a certeza que, dado que continuamos em busca de uma nova ordem mundial, é importante começar por examinar as ligações entre os conflitos internos e as relações de poder entre os Estados. Ainda que seja verdade que o simples número e a intensidade dos conflitos põem em causa o pensamento tradicional sobre a paz e a segurança internacionais, também é verdade que aquilo que consideramos como um conflito interno é algo impreciso. Isto é particularmente verdade numa situação de colapso de impérios multi-étnicos e de estados multi-étnicos.
16. Ao longo dos últimos anos, testemunhámos na CEI e nos estados vizinhos, formas de conflitos e de deslocações que são reminescentes do colapso dos impérios multi-étnicos de Habsburgo e Otomano. Colapsos desta ordem exigem que seja rapidamente repensado o que é interno e o que é internacional. Por vezes, esse repensar pode ser um pouco rápido de mais, como aconteceu com o reconhecimento prematuro das Repúblicas que constituíam a ex-Jugoslávia como estados independentes e os conflitos étnicos e territoriais que se seguiram.
17. O que constitui uma fronteira internacional também se tem revelado pouco claro em muitos casos. Movimentos separatistas, pedidos de auto-determinação ou a desintegração do Estado tem dado origem às chamadas fronteiras-fictícias. Nalguns casos, as pessoas deslocadas internamente tornaram-se refugiados, ou vice-versa, quase de um dia para o outro. No caso da Chechénia, por exemplo, o ACNUR tem prestado assistência a pessoas deslocadas internamente, e não a refugiados no sentido tradicional, que fogem dos combates para as repúblicas vizinhas do Dagestão e Ingushetia, mas foi impedido de operar no interior da Chechénia. Na Bósnia-Herzegovina, as linhas fronteiriças inter-entidades são fronteiras étnicas de facto, impedindo os refugiados e as pessoas deslocadas de regressarem a suas casas em zonas controladas por minorias. Dos cerca de 3 milhões de refugiados e pessoas deslocadas, apenas cerca de 250.000 pessoas regressaram desde que foi assinado o acordo de paz, e quase exclusivamente para áreas controladas por maiorias.
18. Talvez perguntem porque é que o ACNUR, suposto campeão da ação humanitária, continua a insistir nas ligações entre os conflitos internos e a configuração do poder inter-estados. Podemos colocar esta questão porque, com base na nossa própria experiência, embora as causas dos conflitos internos possam ser sobretudo endógenas, as soluções são muitíssimo influenciadas pelo impacto que as relações particulares inter-estados exercem no desenvolvimento de conflitos. Referindo-nos à situação no Norte do Iraque, em 1991, foram os interesses convergentes das Forças da Coligação, formadas pelas principais potências ocidentais - Estados Unidos, Reino Unido, França, etc. - no sentido de proteger a região estratégica do Golfo produtora de petróleo que as forçou à intervenção militar. Reconheciam as preocupações da segurança turca, não permitindo o influxo de refugiados curdos. Em consequência, os refugiados foram detidos nas fronteiras montanhosas, criando uma zona de segurança no Norte do Iraque para permitir o regresso das pessoas. Ao ACNUR foi conferida a tarefa de proteger, assistir e reintegrar os curdos no Norte do Iraque, num ambiente que era tudo, menos seguro, com 500 guardas das Nações Unidas a velarem pelo seu destino.
19. Voltando à situação na Bósnia, foi a falta de convergência de interesses das principais potências que prolongou o conflito e obrigou as forças de manutenção da paz das Nações Unidas a se concentrarem na protecção e no prosseguimento da assistência humanitária liderada pelo ACNUR. Tratou-se de um dilema moral para o ACNUR e outras agências humanitárias manter a assistência humanitária, embora se sentissem cada vez mais impotentes para conter a limpeza étnica, i.e., as deslocações em massa de grupos étnicos, que constituíam o objectivo em si de tão brutal conflito. Pode não ser exagero afirmar que quando a guerra na Bósnia se intensificou, chegando ao ponto de enfraquecer o pacto do Atlântico Norte, as principais potências forçaram o Grupo de Contacto - formado por negociadores dos Estados Unidos, França, Reino Unido, Rússia e Alemanha - a efectuar negociações que conduziram ao Acordo de Dayton. Assim, não constituiu uma surpresa que a implementação do Acordo de Dayton tenha sido confiada às Forças da OTAN, a própria aliança que tinha sido ameaçada pela guerra dos Balcãs. O que está a manter a frágil transição da guerra para a paz é a garantia de segurança fornecida pelas forças da OTAN. Uma componente central desta transição para a paz é o regresso dos retornados e dos deslocados.
20. A maior crise de refugiados com que atualmente o ACNUR se defronta situa-se na região dos Grandes Lagos de África. O conflito étnico no Ruanda que resultou no genocídio de 1994 levou a um fluxo de 1.7 milhões de refugiados hutus para o Zaire, Tanzânia e Burundi. Os conflitos étnicos no Burundi produziram 250.000 pessoas deslocadas internamente e refugiados que fugiram para a Tanzânia e para o Zaire. A segurança nas zonas fronteiriças entre o Zaire, Ruanda e Burundi deteriorou-se significativamente, passando para uma situação praticamente de guerra, envolvendo acções militares de países da região. Até agora, a comunidade internacional deu apenas alguns passos com impacto significativo. O complexo relacionamento entre as potências ocidentais e cada um dos países da região não produziu uma convergência de interesses entre eles, levando-os a intervir1 O Conselho de Segurança adoptou por unanimidade, no dia 18 de Fevereiro de 1997, uma Resolução, S/RES/1097, que:
1. Estipula um plano de paz, em 5 pontos, para o Zaire Ocidental, conforme estabelecido na Carta do Secretário Geral da mesma data:
Cessação imediata das hostilidades;
Retirada das forças externas, incluindo mercenários;
Reafirmação do respeito pela soberania nacional e integridade territorial do Zaire e outros Estados da Região dos Grandes Lagos;
Protecção e segurança para todos os refugiados e pessoas deslocadas e facilidades de acesso a assistência humanitária;
Estabelecimento rápido e pacífico da crise, através do diálogo, do processo eleitoral e da organização de uma conferência internacional sobre paz, segurança e desenvolvimento na Região dos Grandes Lagos.
2. Apela a todos os Governos e partes envolvidas a cooperar com o Representante Comum especial os Grandes Lagos da ONU/OUA, no sentido da obtenção da paz duradoura na região.
3. Decide manter-se activamente empenhado em tudo o que respeita a esta questão (tradução não oficial do ACNUR, Lisboa).
21. Durante quanto tempo se irá permitir que a situação de conflito na região dos Grandes Lagos se inflame ou venha a explodir, dependerá grandemente da veemência com que as partes nos conflitos internos persigam os seus objectivos, do envolvimento partidário dos países da região e do nível de tolerância que as principais potências admitam antes da situação chegar a um ponto explosivo.
22. Quando os conflitos internos se deterioram até ao ponto de guerra, o caminho da paz exigirá uma acção política vigorosa, ou mesmo a intervenção militar. Mas aqui quero argumentar que, para sustentar a paz, uma vez alcançada, e para evitar a recorrência do conflito, são requeridas outras medidas. Aqui, novamente, reveste-se da maior importância o papel dos refugiados, numa transição difícil e penosa da guerra para a paz. Como debati alguns meses atrás, num seminário patrocinado conjuntamente pelo ACNUR e pela Academia Internacional da Paz, realizado na Universidade de Princeton, o processo de repatriamento de refugiados constitui uma parte crucial da resolução dos conflitos e pode contribuir significativamente para o processo de construção da paz. Existem três aspectos críticos no repatriamento na transição da guerra para a paz: reconstrução, desmilitarização e reconciliação. A reconstrução das infra-estruturas sociais e económicas constitui uma condição óbvia para o repatriamento e para a recuperação dos danos causados pela guerra. A desmilitarização é necessária para resolver o dilema da segurança gerado pelo conflito interno e para impedir os antigos combatentes de voltarem a pegar em armas.
23. No entanto, embora a reconstrução e a desmilitarização sejam aspectos críticos para um repatriamento sustentado dos refugiados, é a questão da reconciliação que representa o maior desafio. As sociedades dilaceradas pela guerra são frágeis e, a menos que as chagas da guerra possam ser cicatrizadas e as pessoas cheguem a uma acordo para resolver as diferenças de uma maneira pacífica, podem ocorrer incidentes e violência posteriores. Ao mesmo tempo, a forma como o repatriamento e a reintegração da população refugiada é tratada irá ter influência nas hipóteses de reconciliação, constituindo assim uma parte importante nos esforços de construção da paz. No mínimo, há que restabelecer o conjunto de direitos e deveres entre Estados e os seus cidadãos. Para isso, são cruciais os esforços para restabelecer a primazia do direito. Também se reconhece cada vez mais que a paz só é viável se for combinada com outras medidas na área da justiça, em particular entre populações que foram vítimas de genocídio, de outros crimes contra a humanidade ou de graves violações de direitos humanos. Terá de haver um consenso mínimo sobre o ponto de equilíbrio entre pedidos divergentes de paz e justiça, de perdão e fim das impunidades. A reconciliação é um caminho longo e difícil, leva tempo a percorrer e para o qual não há remédio rápido.
24. Perante estas considerações, voltemos ao conceito de ordem mundial. Empenhados como estamos na situação difícil das pessoas que são vítimas de perseguição, repressão e violência, é-nos por vezes difícil ver ordem no presente sistema internacional. Embora as normas tradicionais de soberania de Estado e de segurança internacional tenham mudado ao longo destes últimos anos, continuamos ainda muito longe de um novo paradigma que nos irá permitir abordar a difícil situação dos refugiados ou, mais ainda, de milhões de pessoas deslocadas dentro dos seus próprios países, cujo número ultrapassa já hoje o dos refugiados, ou seja, de cerca de 25 milhões de pessoas. É normalmente aceite que a acção multilateral tem um papel a desempenhar na prevenção de conflitos armados e na negociação de acordos de paz em conflitos internos.
25. Já é menos evidente ver como esses actores - Estados, políticos e líderes de opinião, ONGs e organizações internacionais - podem ser mobilizados num trajecto de longo prazo para construir a paz. Será que as inúmeras actividades requeridas para lidar com conflitos e com a transição da guerra para a paz, nomeadamente a manutenção da paz, assistência eleitoral, promoção dos direitos humanos, desmobilização, repatriamento de refugiados, assistência humanitária e ajuda ao desenvolvimento podem ser sequenciadas, coordenadas e, o mais importante, sustentadas, para se conseguir atingir um nível capaz de impedir a reaparição da violência?
26. A utilização do instrumento da intervenção indirecta através da acção humanitária foi-se tornando cada vez mais crucial, mas não é suficiente. A questão que se põe actualmente é "Estamos agora melhor do que estávamos há alguns anos?". No que se refere aos refugiados, e em termos prudentes, pode dizer-se que sim, mas com reservas. Passaram-se cerca de dois anos sem haver uma emergência maciça de refugiados, como as que testemunhámos entre 1991 e 1994. Se bem que não se possa excluir a ocorrência de novas emergências, que receamos nesta altura na parte oriental do Zaire, o repatriamento de 1.7 milhões de refugiados para Moçambique e de cerca de 100 mil refugiados para o Mali e Togo, e a frágil paz na Bósnia não são realizações insignificantes.
Concluindo: é verdade que se compararmos com o passado, nestes últimos anos foram efectuadas muitas tentativas valiosas para salvar vidas durante conflitos e para mediar e construir a paz. Mas continuam deslocadas demasiadas pessoas. Continuam por resolver demasiados conflitos. Demasiadas interrogações rodeiam a viabilidade da acção multilateral para os esforços de construção da paz. Começam agora a ouvir-se demasiadas vozes dizendo que conflitos e deslocações longínquos não lhes dizem respeito. Apesar de tudo, cremos que a atenção recente sobre os conflitos internos e a consequente deslocação de milhões de refugiados e de pessoas deslocadas constitui um primeiro passo muito importante dado na direcção certa. Conduz a um entendimento mais fundamentado e completo da questão da paz e da segurança internacionais nos próximos anos.
Se as soluções para os conflitos internos tiverem de ser reforçadas através de esforços internacionais, a nova ordem mundial terá que ser concebida com base na paz e segurança dos povos. A manutenção da paz e da segurança entre os Estados deve contemplar a prevenção e a solução dos conflitos internos que provocam a tragédia humana e a deslocação maciça das populações.
*Baseado no Discurso da Alta Comissária das Nações Unidas para os Refugiados, Prof. Sadako Ogata, Universidade de Harvard "John F, Kennedy School of Government", (Boston, 28 de Outubro de 1996), adotado no parágrafo 18.
Traduzido por Isabel Galvão e revisto por Luise Drüke, Co-editoras da Coletânea de Estudos e Documentação sobre Refugiados, Vols. I e II, pelo ACNUR Lisboa, Portugal, Agosto de 1996, Fevereiro de 1997, respectivamente
sábado, 5 de julho de 2008
ORDEM MUNDIAL, CONFLITOS INTERNOS E REFUGIADOS*
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