domingo, 8 de novembro de 2009

'Obama é o presidente da renovação ou será o Gorbachev americano?', pergunta demógrafo que previu o fim do comunismo

Haroldo Ceravolo Sereza
Do UOL Notícias
Em São Paulo

Em 1976, um demógrafo francês, após analisar dados sobre a população soviética, publicou seus estudos com um título ousado: "A Queda Final - Ensaio sobre a Decomposição da Esfera Soviética" ("La Chute Finale - Essai Sur La Décomposition de la Sphère Soviétique").

Antes que Ronald Reagan chegasse ao governo dos Estados Unidos, antes que a Igreja Católica escolhesse um papa polonês e muito antes que as palavras "Glasnost" e "Perestroika" fossem popularizadas no Ocidente pelo secretário-geral do Partido Comunista da União Soviética, Mikhail Gorbachev, Emmanuel Todd previu que problemas estruturais estavam minando de forma definitiva o poder do PC.

Um dos dados que mais chamaram a atenção de Todd foi a supressão, nas estatísticas oficiais, de dados relacionados à mortalidade infantil. Isso indicava que elas deviam estar subindo. Essa e outras informações oficiais indicavam que o planejamento econômico centralizado no modelo stalinista estava em crise.

Treze anos depois, as previsões começaram a se confirmar.

"A Rússia saiu de forma muito elegante do comunismo, sem muito sofrimento, sem grande derramamento de sangue, quase nenhum. A história real é cheia de paradoxos, não é a história dos sistemas ou das ideias puras. A verdade é que quem venceu o nazismo foram os russos. O grande paradoxo da história é que o sistema stalinista contribuiu largamente para salvar a humanidade", disse Todd, em entrevista ao UOL Notícias.

Na combinação de estatística e geopolítica, Todd foi além. Passou a defender que também o sistema imperial norte-americano vivia uma crise, e o mundo, depois da bipolaridade da Guerra Fria e da tendência unipolar dos anos 1990, conheceria o poder multipolar. É a tese central do seu livro "Depois do Império: a Decomposição do Sistema Americano" (Record, 2003).

Sobre o governo norte-americano de Barack Obama, ele faz uma ligação com a crise do sistema soviético: "Será que Obama é o presidente da renovação ou será o Gorbachev americano? Quando vemos a massa de problemas não resolvidos, volta do desemprego, guerra do Afeganistão... Há, no entanto, uma última força para os EUA. É que o mundo tem medo do vazio."

Para Todd, as estruturas familiares ajudam a explicar porque o sistema soviético ruiu enquanto o Partido Comunista chinês sobreviveu, apesar de até hoje a China manter fortes traços da organização stalinista.

"Se pensarmos que na China há 1,3 bilhão de pessoas hoje, e que na Rússia há 140 milhões, vamos perceber que, do ponto de vista populacional, a maior parte do comunismo sobreviveu", diz ele. Na sua opinião, o sistema familiar chinês, mais autoritário que o russo, ajudou o PC chinês a ter condições de comandar uma aproximação controlada com a economia capitalista.

Leia abaixo os principais trechos da entrevista:

LOUCURAS COMPLEMENTARES
"O sistema ultraliberal é uma espécie de loucura complementar do comunismo. O comunismo é a ideia maluca de que a coletividade é tudo, e o ultraliberalismo é a ideia maluca de que o indivíduo é tudo. Numa sociedade normal, é preciso considerar que há o indivíduo e a coletividade."

SISTEMA REGULADOR
"A União Soviética se tornou uma espécie de sistema regulador do capitalismo. Isso quer dizer que, na época do comunismo, a classe dirigente do mundo ocidental era obrigada a levar em conta os interesses da sua população, dos operários. A queda do comunismo colocou os países ocidentais numa situação de desequilíbrio, numa corrida desesperada pelo dinheiro."

GLOBALIZAÇÃO E ALFABETIZAÇÃO
"O sistema político e as organizações econômicas são a superfície das coisas. Quando as pessoas pensam na globalização, elas pensam em comércio mundial, livre comércio e, eventualmente, difusão de valores políticos. Para mim, a globalização é outra coisa, é a elevação do nível educativo em todo o planeta. Na época do capitalismo e do comunismo triunfantes, na primeira metade do século 20, a Europa, os Estados Unidos e o Japão eram alfabetizados. O que se passou após a Segunda Guerra Mundial foi um enorme desenvolvimento, com a aceleração da alfabetização das populações. Mas nas novas gerações, mais da metade das pessoas sabe ler, mais que isso em certos casos. Em 2030, a totalidade do planeta será alfabetizada.

E é a alfabetização que 'ativa' as populações. Ativa nos planos ideológico, político e, sobretudo, no plano econômico. O conjunto do planeta está se desenvolvendo, por isso há a emergência de países como a China. A China é importante porque ela desequilibra as economias ocidentais, mas agora há o Brasil, a Índia, os novos grandes atores. E, ligada a essa decolagem, há a elevação do nível educativo, em populações que estão ainda em crescimento. Portanto, a ideia de um mundo unipolar, a ideia de que os Estados Unidos, com seus 300, 310 milhões de habitantes, vão controlar um planeta alfabetizado com 6 bilhões de habitantes é absurda."

CHOQUE DE CIVILIZAÇÕES
"Eu escrevi um livro para rebater essa tese (a do choque de civilizações, de Samuel Huntington), chamado "Le Rendez-Vous des civilizations" (O Encontro das Civilizações), com meu amigo Youssef Courbage, um demógrafo especializado no mundo muçulmano. Não penso que haverá um choque de civilizações. Acho, ao contrário, que tendemos para uma convergência razoável, o que não significa, claro, a uniformidade.

O choque de civilizações, entre o mundo cristão e o muçulmano, é uma bobagem, uma idiotice. Eu acho que os antagonismos vêm do fato não apenas de que os países estão em momentos diferentes de desenvolvimento econômico, mas que não estão no mesmo momento histórico. Se você compara cada país em relação aos outros países, você tem uma espécie de 'tempo real' histórico. A China, agora, por exemplo, está completamente alfabetizada, exceto pelos mais velhos. Está agora em termos de alfabetização onde estava a Europa Ocidental no final do século 19. O crescimento chinês, a violência das relações sociais na China, o nacionalismo, tudo o que encontrávamos na Europa do século 19. Há um conflito, em princípio, mas é um conflito que nasce de uma distância histórica."

RÚSSIA HOJE
"A Rússia continua sendo um ator muito importante. Um dos pecados do Ocidente é tratar mal a Rússia após o fim do comunismo. Os russos saíram com muita elegância de uma situação imperial, saíram de uma república popular, deixaram sair de um regime federativo as repúblicas balcânicas, passaram para um regime que não é uma democracia perfeita, há um controle da informação etc., mas, se comparamos o estado de liberdade da Rússia hoje com a da época do comunismo, é claro que avançaram numa boa direção.

A sensação que eu tenho é que os EUA queriam explodir a Rússia, e os jornalistas ocidentais hoje criticam mais a Rússia do que na época em que ela era totalitária. Um jornal com o "Le Monde", por exemplo, quando eu trabalhava nas páginas de cultura, nos anos 1970, era bastante polido com a Rússia. Quando fazíamos um artigo desagradável em relação ao comunismo, éramos interpelados pela direção. Agora que o comunismo acabou e que há eleições na Rússia, o mundo não para de insultá-la."

AMÉRICA À BEIRA DA LOUCURA
No período recente, nos vivemos uma situação estranha também. É para mim muito claro que, na época de [George W.] Bush, a América (Estados Unidos) ficou à beira da loucura. E isso começou a acontecer quando ela acreditou que a Rússia tinha afundado completamente, por volta de 1996, 1997, ainda na segunda administração de Bill Clinton.

Para quem se preocupa com a relação de forças, não tanto com a natureza do sistema político, há uma potência que permite o equilíbrio da potência nuclear estratégica norte-americana, que é a Rússia. Enquanto existir a Rússia, a América não pode fazer só que o lhe importa. A Rússia continua a ser o único país que pode fazer face ao poder nuclear norte-americano, portanto nós não saímos do equilíbrio anterior. Se a Rússia tivesse afundado completamente, não haveria uma outra potência de equilíbrio."

EUA IMPOTENTES, RÚSSIA MAIS FRACA?
"Eu tenho um livro, 'Depois do Império', em que eu profetizo o declínio dos Estados Unidos. E tem um capítulo sobre um retorno da Rússia. No momento, estamos tomando consciência de que a América não domina o mundo. Primeiro, tomamos consciência disto no Iraque e no Afeganistão. Mas acho que o ponto de virada dessa percepção ocorreu quando a Rússia invadiu a Geórgia e os Estados Unidos foram incapazes de reagir. O que foi impressionante foi a impotência completa dos Estados Unidos, que não conseguiu apoiar um aliado.

A Rússia se mostrou muito importante em todo esse período intermediário. Mas, para o futuro, sua fraqueza demográfica é tal - taxa de mortalidade alta, taxa de nascimento baixa, perda de centena de milhares de habitantes por ano - que ela pode deixar de ser uma potência importante."

IRAQUE
"A situação está estabilizada porque os Estados Unidos fizeram vários acordos com diferentes grupos e não controlam mais nada. De fato, o que vai se passar no Iraque quando os americanos se retirarem nós não sabemos. O que restará da Guerra do Iraque para os Estados Unidos é que ela foi uma verdadeira abominação humana. Uma guerra de agressão. Quando contabilizarmos todos os mortos que ela provocou por nada, bloqueando o desenvolvimento normal do Iraque...

Cada país conhece um certo número de 'más-ações' em sua história. Para a França, foi a Guerra da Argélia. Para os Estados Unidos, a bomba atômica de Hiroshima, o Iraque..."

AFEGANISTÃO
"O Afeganistão será a guerra que eles irão perder. É uma guerra perdida, uma catástrofe que se desenvolve. A grande questão para os historiadores será entender por que os dois grandes impérios, o império soviético e o império americano, decidiram morrer militarmente no Afeganistão.

Há algo de surpreendente. Não sou crente, mas se tivesse alguma crença, eu veria nas duas guerras do Afeganistão uma espécie de maldição divina. Uma região do mundo totalmente desprovida de interesse: é um problema para os metafísicos, para os moralistas, não para os especialistas em geopolítica."

UNIÃO EUROPEIA
"O papel da União Europeia, hoje, é nulo. Os dirigentes europeus não têm papel nenhum. Eu trabalho no Instituto Nacional de Estudos Demográficos, sou portanto muito sensível às questões da população. Por muito tempo, foi dito que o envelhecimento da população europeia, resultado da baixa taxa de fecundidade, era um problema. Quem elegeu Nicolas Sarkozy (presidente francês) foram os velhos. Eles são cada vez mais numerosos, e deixam que a globalização e o livre-mercado provoquem um empobrecimento da juventude.

Há, claro, outros fatores para a Europa, mas eu sou cada vez mais sensível à questão do envelhecimento da população deste continente. Nas últimas eleições europeias, a direita venceu, e isso é resultado do envelhecimento. Não ocorre, claro, com todo mundo, mas há uma tendência de os mais velhos votarem na direita, é uma regularidade das análises eleitorais."

EUROPA, SUBPOTÊNCIA
"A Europa hoje é o principal massa industrial do planeta. Não são os Estados Unidos, está longe de ser a China. O centro de gravidade industrial do mundo é a Europa, com seu coração na Alemanha. Europa é, do ponto objetivo, no entanto, uma subpotência.

Nós estamos em um momento de hesitação, porque as pessoas acham que a crise mundial terminou. Não acredito. O que aconteceu foi que os Estados Unidos e a Europa conseguiram relançar a economia chinesa. A crise não terminou e nesse momento, talvez os europeus percebam que têm os instrumentos para comandar o mundo. O caso da Europa, no entanto, é impressionante, porque é o caso de uma potência objetiva e de uma subpotência subjetiva."

OBAMA
"Para mim, a questão que resta é se a dinâmica dos clãs norte-americanos, a fraqueza do dólar, as dificuldades para se livrar da atual conjuntura... Será que Obama é o presidente da renovação ou Obama será o Gorbachev americano? Quando vemos a massa de problemas não resolvidos, volta do desemprego, guerra do Afeganistão... Há, no entanto, uma última força para os Estados Unidos. É que o mundo tem medo do vazio. O sistema de dominação ou de liderança não existe somente porque há relações de força, ele existe também porque as pessoas aprovam a ideia de uma necessidade de liderança."

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