quarta-feira, 27 de agosto de 2008

Sejamos realistas em matéria de armas: peçamos o impossível!

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O impossível é possível, nós loucos somos ajuizados
José Martí



Boris Luis Rodríguez García*



Qualquer esforço que procure soluções efetivas, duradouras e sustentáveis contra a violência social com armas de fogo na América Latina deve se confrontar com pelo menos dois aspectos essenciais: um de natureza antropológica, e o outro de caráter sistêmico.



O primeiro é afim àquilo que poderíamos conceituar como “sedimentação de uma subcultura de possuir armas de fogo”, amplamente difundida nas sociedades da região. Essa construção sociológica encontrou reforço e sustentação, por um lado, na licitude conferida pela modernidade latino-americana à posse de armas de fogo por civis, sintetizada juridicamente no direito à propriedade de armas, o que é uma perversão categórica do verdadeiro sentido dos direitos humanos.



O outro fator é de legitimidade ante o empurrão da delinqüência e da criminalidade; em muitos setores do corpo social latino-americano existe a crença na necessidade da posse de armas de fogo para fins de defesa da segurança individual, da família e do patrimônio, em razão da incapacidade manifesta do Estado para garantir essa função pública com eficácia.

O segundo aspecto – de caráter sistêmico – está relacionado com a natureza do modelo de desenvolvimento que tem prevalecido na região, para o qual concorrem fatores de natureza histórica e mercantil que favorecem a expansão de um mercado doméstico de armas, acirrado pelos níveis crescentes de pobreza e de desigualdade.



Literalmente, as duas questões têm estado fora da mira, ou pelo menos, sua presença tem sido intermitente. Figuram na agenda dos temas pendentes, no caminho rumo a sociedades livres do flagelo das armas de fogo.



No debate sobre as estratégias (e na própria práxis) para enfrentar as conseqüências sociais e humanitárias das armas tem prevalecido um enfoque tecnocratizado. Com a honrosa exceção de uns poucos grupos vanguardistas que desenvolvem na contracorrente campanhas em favor da revogação do direito de possuir e portar armas de fogo, a maior parte da comunidade de ONGs latino-americanas tem enfocado sua atividade no terreno do controle de armamentos e nas ações de conscientização.



É preciso reconhecer que esse trabalho tem sido de suma utilidade. No entanto, é necessário recolocar no debate a questão da posse legal de armas, assim como os aspectos de ordem política vinculados ao desenvolvimento econômico e social. A sociedade civil organizada tem um papel primordial, pois ela tem estado no epicentro da consciência mundial, muitas vezes coagindo à ação os atores de governo. O Tratado para o Comércio Mundial de Armas é o melhor exemplo disso.



É necessário que se compreenda de uma vez por todas que as ações destinadas a fixar limites sobre o tipo e a quantidade de armas que os civis podem adquirir e portar, assim como outras ações que estabelecem exigências rígidas para concessão de licenças, a gestão de registros, o controle das transferências, dos arsenais e dos intermediários, ainda que sejam indispensáveis para tentar fechar as brechas do mercado ilegal, contribuem muito pouco para a solução do problema de fundo.



Como regra, a sociedade civil tem trabalhado adotando um critério do possível, que parecia corresponder às dinâmicas do nosso tempo histórico. Ante a impossibilidade aparente de alterar sensivelmente a correlação de forças que impera no campo cultural e no campo mercantil, as organizações da sociedade civil apostaram no sucesso de impactos graduais nos espaços nos quais lhes é dada margem de manobra. Não devemos esquecer que, neste campo, o Estado e o mercado reservam para si o papel fundamental. No entanto, nesse assunto como em outros, quem não luta para mudar tudo corre o risco de não mudar nada.



Das ONGs, e de modo geral da sociedade civil, se pede uma visão estratégica, que interprete o arcabouço de regulamentos sobre a posse de armas por civis, como passo inicial, no difícil caminho que permita extirpar as armas das mãos de civis. Se assim não for, estaremos fazendo zelosamente o jogo da lógica do mercado. Por isso, a única solução realista e sustentável é a supressão total da posse civil de armas de fogo, junto com a construção de sociedades cada vez mais inclusivas e justas, com níveis elevados de desenvolvimento social.



Muitas organizações que, de maneira abnegada, trabalham nesse campo, teriam razão em sentir-se desbordadas, levando em conta as proporções enormes do empreendimento. Nas atuais condições, exortar tais organizações a enfrentar a questão da posse de armas pode parecer um convite intempestivo ao fracasso. Por sua natureza, o desafio colocado pelo tráfico ilegal de armas é gigantesco.



Mas então, o que fazer? Como implodir essa realidade, por onde começar? Em primeiro lugar, é urgente identificar os atores sociais dispostos a comprar a briga. Uma das limitações fundamentais no que diz respeito às armas tem sido o corporativismo em torno do tema, por parte de um número restrito de organizações.



É preciso superar a lógica da dispersão, incorporar outros atores locais e regionais, transfundir as experiências de luta do movimento social para o terreno da segurança, conquistar as ruas, organizar o tema da posse de armas de fogo no debate social, conscientizar, construir alianças, dialogar com o setor informal, com as igrejas e as comunidades de base, com as associações de mulheres e de jovens A abundância de atividades é infinita.



Um dos desafios fundamentais é socializar eficazmente o tema da posse de armas e suas implicações verdadeiras para a segurança. A experiência do referendo sobre armas no Brasil demonstrou as imperfeições da democracia quando o público está mal informado, além da força das circunstâncias que obrigam as pessoas a pensar como o fazem, mesmo que isso signifique celebrar sua própria perdição.



É vital articular uma crítica à razão do mercado, partindo da sociedade civil. Se não se contrariar o sacrossanto direito à posse de armas de fogo, todos os esforços serão em vão. Os fabricantes e os vendedores de armas dispõem de recursos publicitários formidáveis, com a missão de garantir a execução comercial de seus produtos iníquos. Tiram proveito e trabalham de mil maneiras para reforçar no público as percepções de insegurança cidadã.



Suas tecnologias de marketing são “exemplares”, suas credenciais de empresas socialmente responsáveis surpreendem, a ponto de semear na mente das pessoas reflexões sobre a segurança como sendo um assunto privado, de acordo com os conceitos individualistas mais antiquados difundidos pela filosofia liberal.



É preciso combater no plano das idéias. No catálogo dos defensores das armas, chama a atenção a abundância de argumentos pouco rigorosos que utilizam para demonstrar, entre outras coisas, que a proibição da posse de armas conduz inexoravelmente ao aumento da criminalidade, e vice-versa, sem levar em conta a multiplicidade de fatores determinantes. E justamente, esse é um dos conceitos que se costuma repetir de forma mais obstinada. O paroxismo da manipulação chega ao ponto de vender como sendo infalíveis os modelos epistemológicos que utilizam para fazer os estudos de caso correspondentes, sem mesmo fundamentar ou demonstrar sua validade.



As armas de fogo, sejam elas lícitas ou ilícitas, só ajudam a semear o terror, a morte e a desolação. É necessária uma renovação de ordem moral, uma revolução na cultura, que devolva a fé no ser humano e que cultive o amor à vida.



A violência social com armas de fogo encontra sua fonte de alimentos no sistema capitalista. As conseqüências piores são sofridas pelas camadas mais pobres, que lutam a cada dia para ganhar a vida nas ruas. Por outro lado, as classes abastadas adquirem padrões cada vez mais altos de segurança. Esta é uma luta longa e desigual que se combaterá tiro a tiro, com dedicação, constância e coragem, para enfrentar as campanhas, as pressões e as ameaças dos grupos de poder. O erro fundamental seria a ingenuidade e a falta de consciência.



A política, em matéria de armas, não deve ser a arte do possível, mas a arte de tornar possível o que é aparentemente impossível.



*Sociólogo, pesquisador do Centro de Estudios sobre América. La Habana, Cuba.
boris@cea.org.cu

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