Alessandra Corrêa
Da BBC Brasil em São Paulo
"Se não ficar claro por que estamos recebendo Ahmadinejad, a posição do Brasil pode ser mal-interpretada", afirma o analista, que é sócio-diretor da MCM Consultores Associados e autor do livro A Agenda Internacional do Brasil: A Política Externa Brasileira de FHC a Lula. "Pode parecer que estamos apoiando o que o presidente do Irã pensa e fala."
Segundo Souza, o diálogo com Ahmadinejad deve ser feito "dentro de uma estratégia clara", em que o Brasil reafirme ao presidente iraniano suas posições de defesa do Estado de Israel, da democracia e contra a proliferação nuclear.
Ahmadinejad chega ao Brasil em um momento de grande pressão da comunidade internacional para que o Irã abandone seu programa nuclear, por temor de que o país esteja tentando desenvolver armas secretamente. O governo iraniano nega essas alegações e afirma que seu programa é pacífico.
Souza diz que o Brasil, que tem em sua Constituição a proibição de armas nucleares, não pode aceitar uma situação em que outros países desenvolvam armas nucleares.
"Nossas diferenças com o Irã são diferenças de princípio", afirma.
Leia abaixo os principais trechos da entrevista:
BBC Brasil – A visita do presidente do Irã, Mahmoud Ahmadinejad, tem dividido opiniões. Alguns analistas dizem que é ruim para a imagem do Brasil no Exterior. O governo afirma que isso mostra independência e que o melhor caminho é o diálogo. O que o senhor acha?
Amaury de Souza – Não há, em princípio, nenhuma objeção ao fato de o Brasil conversar com todos os países, todos os dirigentes. Mas isso tem de ser feito dentro de uma estratégia que seja clara, não apenas para o público doméstico, mas também internacionalmente. Não se aceita se não deixar claro o que está conversando. E, no caso de Ahmadinejad, não está claro.
O Brasil não tem visivelmente interesses muito vitais em relação ao Irã. Exportamos muito para o Irã, mas ainda assim o volume não se compara com o que temos com outros parceiros. Aumentou, mas ainda é pequeno. E, além disso, podemos continuar a exportar para o Irã sem receber o presidente aqui.
O grande problema é que o senhor Ahmadinejad já definiu certas ações contrárias aos interesses brasileiros. Como a repressão à oposição após as eleições (de junho, em que Ahmadinejad foi reeleito). O Brasil tem uma posição constitucional a favor da democracia. Trata-se de um comportamento ofensivo aos valores (brasileiros). Em segundo lugar, Ahmadinejad vem há tempos defendendo uma linha muito radical em relação a Israel e, particularmente, em relação aos judeus, afirmando que não houve o Holocausto. Novamente, é um comportamento ofensivo aos valores e à tradição da política brasileira. Em primeiro lugar, porque Israel é um velho e forte aliado do Brasil. A criação do Estado de Israel foi fortemente apoiada pelo Brasil.
Temos na cultura brasileira a tradição de completo respeito a qualquer etnia e a qualquer religião. Aqui dentro, nos orgulhamos do fato de que judeus e árabes, ou islâmicos e israelitas, vivem em perfeita harmonia. Disso não abrimos mão. Então, a presença do senhor Ahmadinejad, sem estar claro no que interessa aos interesses brasileiros, significa apenas importar conflitos do Oriente Médio para dentro do Brasil. Nos preocupa também a presença do Irã em outros países da América do Sul, como a Venezuela e a Bolívia.
BBC Brasil – Mas não há um certo exagero e um uso político das críticas à visita de Ahmadinejad? O próprio chanceler da Europa, Javier Solana, já disse que é bom que o Brasil abra um canal de diálogo com o Irã.
Souza –(O presidente dos Estados Unidos, Barack) Obama também disse isso. Não tenho nada contra o Brasil abrir um canal de diálogo, mas tem que ser claro. Vamos abrir um canal de diálogo para que? Se é para conseguir um voto para a entrada do Brasil como membro permanente no Conselho de Segurança (da ONU), não precisa vir o presidente aqui. Simplesmente conversando, como vamos ajudar o diálogo de paz?
BBC Brasil – Que consequências negativas a visita de Ahmadinejad pode trazer ao Brasil?
Souza – Temos uma população em que judeus e muçulmanos vivem em perfeita harmonia e vamos acabar importando para o Brasil um conflito que não é nosso. Ahmadinejad tem um discurso radical que pode ter consequências internas. Em primeiro lugar, como um insulto à comunidade judaica. Não podemos esquecer que brasileiros morreram na Itália lutando para derrotar o nazismo. Isso tem a ver com a memória brasileira, com a memória dos nossos soldados. O nazismo fez o Holocausto. O governo não pode simplesmente fazer o que passa pela cabeça.
BBC Brasil – Quais são os interesses do Irã com essa visita?
Souza – Os interesses são claros. O Irã tem um projeto próprio de poder para o Oriente Médio. Quer se lançar como a principal potência no Oriente Médio. É preciso lembrar que o Irã tem condições muito específicas para reivindicar esse papel. É de longe a cultura com maior tradição de vida política e de liderança dentro do Oriente Médio. No fundo, nada mais é do que o modelo do Império Persa, que antecedeu até mesmo o surgimento do islamismo na península árabe.
Segundo, tem uma força religiosa muito específica. São persas e são todos xiitas, em um Oriente Médio dominado por sunitas. Com o enfraquecimento do Iraque, que sempre foi outro polo de competição política com o Irã, ficou com mais espaço para o seu projeto de se tornar uma potência no Oriente Médio.
Para Ahmadinejad, é importante que possa projetar o prestígio de seu país em outros continentes. Hoje o Irã vive em um quase limbo por causa de sanções da ONU contra seu programa nuclear. Essa é a razão de Ahmadinejad vir ao Brasil, à Bolívia, à Venezuela.
BBC Brasil – Como a visita de Ahmadinejad se encaixa na estratégia do Itamaraty de inserção do Brasil no mundo?
Souza – Existe uma estratégia? Não consigo ver qual é. O Itamaraty quer negociar apoio à entrada no Conselho de Segurança? Acha que é capaz de demover o Irã da ideia do desenvolvimento de seu programa nuclear? Acha que tem um papel em mudar a posição do Irã com relação a Israel? Acha que tem poder para fazer tudo isso? Faço perguntas retóricas porque me parece que se é isso que o Itamaraty quer está um pouco longe da sua capacidade. O Brasil nunca foi um ator de qualquer relevância na política do Oriente Médio. A única vez em que desempenhamos um papel mais ou menos importante no Oriente Médio foi quando apoiamos o Iraque na guerra contra o Irã, com o fornecimento de armas.
A posição brasileira sempre foi de defesa do Estado de Israel, e essa é uma estratégia e uma tradição brasileira, tem lastro, tem princípios atrás dela. Dentro disso, lutamos pela constituição de um Estado palestino. Lutamos pela paz dentro do Oriente Médio, contra a proliferação nuclear. São valores que o Brasil vem defendendo há décadas.
Se Ahmadinejad quer se aproximar do Brasil, tem que saber que nossas posições são essas. Se não, vai parecer aos olhos do mundo que o Brasil está recebendo Ahmadinejad porque as posições que ele defende não são ofensivas para o país. E isso não é verdade. Elas são ofensivas.
BBC Brasil – Em nome do pragmatismo, e com a justificativa da não-interferência em assuntos internos e da importância na manutenção de canais de diálogo, o Brasil tomou atitudes criticadas por grupos de defesa dos direitos humanos. Recebeu políticos acusados de crimes contra os direitos humanos, votou contra sanções duras a governos acusados de crimes contra a humanidade. Não há um limite para esse realismo político?
Souza – O realismo político não pode virar sinônimo de oportunismo. O Brasil tem que ter clareza sobre seus interesses nacionais. A diplomacia só existe para defender os interesses do Brasil. Onde esses interesses estão sendo defendidos, não está claro.
BBC Brasil – Há o risco de o feitiço virar contra o feiticeiro?
Souza – O Brasil é interpretado como estando fazendo um gesto em outra direção. Isso tem consequências internas indesejáveis. O Brasil deveria chamar o Ahmadinejad e dizer: “Houve Holocausto sim”. Mostrar que aqui não é a casa da sogra.
BBC Brasil – O Brasil recebeu, no período de duas semanas, as visitas do presidente de Israel, Shimon Peres, do presidente palestino, Mahmoud Abbas, e agora do presidente do Irã. Há alguma chance de o Brasil realmente se tornar um interlocutor importante nas questões do Oriente Médio?
Souza – Acho difícil. Não temos nenhuma tradição de participação em questões no Oriente Médio. E que poder temos? Que fórum podemos comandar para resolver a situação no Oriente Médio? Me parece um pouco exagerada essa pretensão.
É evidente que Israel, ao saber que o presidente do Irã vem ao Brasil, também resolve vir, para deixar claro quais são suas posições. Temos tratado de livre comércio com Israel, mas não com o Irã. Israel é um valioso parceiro para o Brasil. Tem mais que apenas o comércio. Temos um tratado, isso mudo a situação de Israel perante o Brasil.
Se não ficar claro por que estamos recebendo Ahmadinejad, a posição do Brasil pode ser mal-interpretada. Tem consequêncas externas. Pode parecer que estamos apoiando o que o presidente do Irã pensa e fala.
Estamos muito longe do Oriente Médio. É preciso ter certa sobriedade, não achar que estamos no centro do mundo. O Brasil não é um ator tão importante na política mundial. Se compararmos o Brasil não apenas com as grandes potências, mas até mesmo com seus parceiros no Bric (grupo formado por Brasil, Rússia, Índia e China), vemos que sua importância é muito relativa. É preciso ter modéstia.
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